sábado, 8 de agosto de 2009
Uma armadilha para o meu pai
Uma vez meu irmão leu o Manual do Escoteiro-Mirim, da Disney. Ficou cheio de idéias mirabolantes para travessuras e diabruras. Uma delas consistia em pregar uma peça numa pessoa. A brincadeira exigia um balde de plástico, uma corda, água e uma porta. O balde cheio d´água era equilibrado sobre a porta entreaberta. A corda amarrada a um prego na parede e ao balde impediria a queda sobre a cabeça da pessoa. Sopa no mel. Água com açúcar. Mole, mole.
A vítima foi o nosso pai. Alguma coisa parece ter dado errado com a armadilha, pois o balde se encaixou sobre a cabeça do meu pai. Ele estava vestido de terno, gravata, processos nas mãos, papelada de trabalho, livros de direito. Ficou ensopado. Não lembro qual foi a punição que meu irmão recebeu. Mas deve ter sido justa, razoável.
Meu pai sempre foi justo e razoável. E ao contrário de mim, que não escondo cara feia e parto para uma discussão aos berros, meu pai é discreto. Queria ter puxado a ele num monte de coisas boas, mas as virtudes e qualidades não costumam ser transmitidas geneticamente, azar o meu.
Uma das qualidades que mais admiro no meu pai é a sua disciplina. Ele tem uma força de vontade fantástica e consegue se impor sacrifícios e restrições com grande rigor, para alcançar seus objetivos. Isso vai da dieta rigorosa para diminuir a taxa de colesterol ao estudo diário para aprender a tocar um instrumento musical, para saber uma coisa nova, para aprimorar o conhecimento sobre algum detalhe das coisas que lhe interessam. Com ele, aprendi desde cedo que, na maioria das vezes, "querer é poder".
Mas também não adianta dar "murro em ponta de faca". Aprendi também que "a cavalo dado não se olha os dentes". E que é muito importante ser fiel "no pouco e no muito". E também que é muito importante agradecer. Obrigado. Thank you. Merci beaucoup. Muchas gracias. E é bem verdade que às vezes eu não agradeço o tanto que deveria agradecer, fico devendo e me esqueço. Não deveria, mas acontece, o ser humano é mesmo um poço de falhas e sucumbências.
Muitos anos depois, numa aula de catecismo aprendi o o quarto mandamento, "honrarás teu pai e tua mãe". Por algum estranho mecanismo cerebral, sempre liguei esse mandamento ao dia em que meu pai caiu na armadilha do meu irmão. É lógico que não me lembro de ver meu pai com um balde sobre a cabeça, ou com as roupas molhadas. Não me lembro sequer de ter visto um processo ou um livro empapado com água. Não me recordo de nada disso. Mas tenho forte na lembrança o assombro e a vergonha que se instalaram no rosto do meu irmão. De algum modo tenho certeza de que, na verdade, a armadilha era para mim. E não ter caído nela, ensinou muito a nós dois. Embora eu às vezes ainda seja teimoso e continue a querer colocar em prática uma idéias mirabolantes que eu tenho.
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2 comentários:
Caramba, maravilhoso o seu texto!
Parabéns.
Anna V., bem-vinda à Kombi e obrigado pelo elogio. Gosto muito de elogios. :)
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