sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ao Ministro da Dupla Absolvição

Até poucos anos, eu era apenas um “cozinheiro”, como o Meritíssimo fez questão de comparar outro dia, sem dúvida nenhuma com a melhor das intenções. Não tenho formação jurídica, embora tenha estudado um pouquinho. Nem por isso estou mais ou menos sujeito a argumentos de autoridade. Continuo a ser um humano vivente e pensante, que um dia vai morrer, tal e qual os gênios do Congresso que fizeram as leis e os sensacionais intérpretes das mesmas que trabalham para a sociedade brasileira aí no Supremo Tribunal Federal. Por esse motivo, julgo que tenho um mínimo de discernimento para falar sobre a decisão do Meritíssimo, que partiu um crime em dois e assim se recusou a admitir um processo sobre um trio de acusados de um crime único. Na prática, Vossa Excelência foi o melhor dos juízes, pois ao não aceitar a possibilidade de exame do caso, inocentou o mesmo acusado duplamente. Absolvição é com o Meritíssimo mesmo.

A decisão do Supremo foi acachapante e humilhante. Cinco contra quatro. O Meritíssimo foi um dos cinco que mandaram fatos às favas. Estranhamente, pelo voto do Meritíssimo, só um dos acusados do trio será processado por uma das metades do crime, embora estivesse sendo acusado de partícipe de um crime inteiro.

Exatamente pelo fato de Meritíssimo exercer o nobre ofício de intérprete legal, eu me permitirei comparar a atuação de ontem com a de um “cantor”. Registro que tenho grande respeito pela maioria dos cantores. E também devo registrar que na quinta-feira, dia 27 de agosto de 2009, o Meritíssimo brindou o país com um minueto fora do tom e em descompasso rítmico. Até aí nada de extraordinário. Existem bons e maus cantores, nem todos nos agradam. Mas o Meritíssimo desandou na harmonia ao dividir o crime da quebra de sigilo em dois: a invasão da conta e a revelação do conteúdo.

Na minha ignorância de cozinheiro, essa é uma prática inovadora, que pode se revelar perigosa. Dividir crimes em dois é bem esquisito. Especialmente quando o Ministério Público procurou e apresentou, em mais de mil e quinhentas páginas, uma coleção de indícios para tentar enquadrar um trio de acusados em apenas um. Aparentemente, ao se dividir um crime, os acusados estariam sujeitos a serem condenados duplamente por terem feito apenas uma coisa, mas o que acontece é exatamente o inverso. Ao se dividir um crime, da maneira como diabolicamente (no sentido de desconstruir, destruir) foi feita, ele deixa de existir.

Das máximas do direito, que sei de orelhada, ficaram duas: na fase de instauração de processo prevalece a regra de ouro IN DUBIO PRO SOCIETAT, na fase de julgamento prevalece a regra IN DUBIO PRO REU. Mas eu sou só um careca idiota. E apenas quatro de nove ministros concordam comigo. Para eles e para mim, o processo tinha cabimento, valia a pena julgar, ainda que não se chegasse à condenação. Mas para o Meritíssimo, é preciso primeiro apresentar provas para se ter processo. E as provas devem se referir não somente ao crime, mas também às suas partes. Confesso que pirei, nunca tinha visto nada disso em filme nenhum, nem naquela versão esquisita de “O Processo” de Kafka, em que Joseph K é processado por uma barata depois de escrever uma carta malcriada para o pai de uma ex-noiva.

Dividir crimes em dois, em geral, não é vantajoso. Vamos examinar o crime de furto. Um Fulano furta a galinha do Meritíssimo que estava na sua residência. A galinha não valia nada, nem botava mais. Mas o furto, como sugere o Meritíssimo, é dividido em dois: invasão do galinheiro e remoção da galinha. Ora, Fulano não invadiu o galinheiro, a galinha o convidou. E não removeu a galinha, ela fugiu espontaneamente com Fulano, em busca de um destino menos penoso. Muito embora os indícios apontassem em outra direção, a de que a galinha foi violada. Não faz muito sentido, mas deve haver alguma coisa em alemão sobre isso.

O Meritíssimo, com essa tese de dividir um crime pelo meio, não vai poder voltar atrás no voto nem com uma confissão do acusado. Se o ex-provável réu confessar hoje que cometeu o crime da quebra de sigilo bancário, não será processado. Para o Meritíssimo, esse fato novo não vale coisa alguma, porque ele não invadiu a conta do caseiro e não revelou o conteúdo dessa conta. Para o Meritíssimo, um trapalhão que não teria proveito nenhum com a quebra de sigilo é o único réu que pode vir a ser culpado de meio crime.

Dizem as más línguas, inclusive, que já havia um culpado pronto para se apresentar de corpo inteiro, para um crime só, mas inteiro, caso surgisse a necessidade. Por agora, ficou réu apenas um pateta covarde que achava que tinha poder para esculhambar um humilde para agradar a um poderoso, com a possibilidade, remota, de pagar meio pato. O único suspeito que poderia responder pelo crime de revelação do conteúdo para a imprensa não responderá a processo, não corre mais o risco de pagar pato algum.

Sobre isso, aliás, tivemos o Garganta Profunda, nos EUA. Dois jornalistas protegeram a identidade de um dedo-duro, um poderoso servidor público com informações quentes para derrubar chefes ainda mais poderosos. O caso Watergate botou o presidente Nixon na rua. O nome Garganta Profunda foi inspirado num filme pornográfico da época.

Aqui no Brasil entendemos e fazemos tudo ao contrário.

Nesse caso, temos o Profundo Gogó. Os jornalistas de uma grande revista protegem o sigilo da fonte poderosa que violou o sigilo de um simples caseiro para a desconstrução dessa figura. Uma perícia confirma que o fax com as informações que comprovam a quebra de sigilo foi passado de A para B. O papel do fax foi o mesmo mostrado ao suspeito pelo único que ficou réu. Mas quem liga para os fatos? O sujeito A foi liberado por insuficiência de provas e B, os cozinheiros da revista, cozinham o galo a fogo brando. O nome Profundo Gogó é inspirado na pornografia diária que fazem com as pessoas simples deste país, que ainda acreditam em justiça.

Por último, gostaria de dividir o voto do Meritíssimo em duas partes. A primeira fede. A segunda não cheira bem. Tomara que a história não venha mostrar que esse voto foi uma espécie de canto de cisne, que cantou a pedra fundamental para a imolação do STF e do judiciário do país. Mesmo assim, os "cozinheiros" que se cuidem, porque os poderosos estão cada vez mais poderosos, inquestionáveis e improcessáveis. Graças ao Meritíssimo e outros quatro colegas, prevalece o IN DUBIO PRO VIP, onde se mantém a prerrogativa de que aquele que manda pode tudo e que tudo vai continuar a ser assim mesmo. E lambam. Da minha parte, ensinarei desde já aos meus filhos que figuras como o Meritíssimo podem ser divididas em duas partes que se inclinam para a mesma direção...

2 comentários:

LaLeLiLoLu disse...

Querido Careca,
eu simplesmente amei este seu post há algum tempo não via tanta lucidez! Obrigada por compartilhar! Triste é ver que depois da tomada de poder pela "oposição" não haja mais oposição para a safadeza e que o desmando agora seja compartilhado pela eterna posição e a ex-"oposição".
Por essas e outras dei entrada no meu processo de imigração, não quero ensinar aos meus filhos que existem mais de um peso e uma medida, que a justiça não existe e muito menos crimes possam ser divididos!
Abraços
Liliane

Careca disse...

Liliane, foi muito triste ver um erudito pusilânime! Grande abraço,

Frase do dia