terça-feira, 18 de março de 2014

Republicando Bicicleta na Vertical I

(Publiquei o texto abaixo neste blog em março de 2008)

Às sextas-feiras na escola alternativa das crianças, do horário do recreio em diante, eles fazem uma coisa chamada “Vertical”. Todas as crianças, de dois a seis anos de idade, de todas as salas, participam da mesma brincadeira. Eles chamam a brincadeira de atividade. Tem culinária. Tem teatro. Tem festa a fantasia. Tem circuito. Tem pique esconde invertido. Pique esconde invertido?
_É, pai. Todo mundo procura, menos um, que fica escondido – o mais velho me explica.
Imaginei a escola inteira contando até vinte para que eu me escondesse. E depois, todo mundo correndo, em todas as direções para me encontrar. Eu, lá em cima da árvore, feito o tio maluco do Fellini em “Amarcord”. Parecia divertido.
_E circuito, como é?
_Tem as flechas no caminho e você vai seguindo. É massa.
_É da hora, pai – a menina concorda.
Anteontem foi dia de levar bicicleta para a vertical. Poderia ter levado um velocípede modernoso, o velotrol, e a bicicleta. Mas eu resolvi levar duas bicicletas. Uma é cor-de-rosa e a outra é de super-herói. De manhã é uma confusão danada até estarmos prontos para sair. Mamar, escovar, limpar, lavar, vestir, comer, beber, fazer xixi, etc. Na hora de sair, descubro que a rodinha da bicicleta do homem-aranha não está onde deveria estar.
_Cadê a outra rodinha? Você viu?
_Não – respondem os dois, ao mesmo tempo.
_E você consegue andar só com uma rodinha, filho?
Ele nega. Mesmo assim, na minha frente experimenta um pouco e quase cai na segunda pedalada.
_Deve estar em algum lugar. Mas agora não dá tempo de procurar. Na volta eu acho. Eu arrumo a bicicleta e levo antes do recreio, antes de começar a vertical.
_Não, sem a bicicleta eu não vou.
_Filho, agora não dá tempo nem de conversar. Vamos nessa!
E a contragosto, ele apanha a mochila e me segue. Faz um beiço enorme. Franze a testa. Cruza os braços. E a irmã provoca um pouco, só para me bajular e deixar claro que com ela está tudo bem.
_Pai, ele está pondo língua.
_É feio por a língua, filho.
_Pai, ela é dedo-duro.
_É feio ser dedo-duro, filha.
_Pai, ele me bateu.
_ Não pode! Bater no mais fraco é covardia. Pede desculpas.
_Desculpas.
E aí vem um minuto de pausa. Sinal de cérebro funcionando e de que vem pergunta. O que será que será?
_Pai, pode bater no que tem força igual?
_Po... ahn, aí depende – eu me embolo todo nas piores horas.
_Não, seu bobo, quem tem força igual nem briga, né pai? – a salvação vem de um juízo de três anos.
_É melhor não brigar. Nem com mais forte, nem com mais fraco. O melhor é conversar – tento retomar o controle.
E conto a história do menino que vivia apanhando do fortão da escola. Até o dia em que ele aprendeu qual era o ponto fraco do menino fortão. E era o dedão do pé. E quando o fortão chegava perto para bater, o menino pisava, com toda a força, no dedão do pé do menino fortão. E depois disso, o menino mais fraco nunca mais apanhou do fortão. Na verdade, depois disso, o menino mais fraco começou a pisar no dedão do outro todos os dias. E aí o pai desse menino mais fraco foi processado, pois o pai do menino com o dedão inchado era advogado. Os dois pais se enfrentaram no tribunal. De um lado, a torcida do pai menino fortão. Todo mundo malhado, musculoso, fazendo “uh, tererê”! E do outro, a torcida do pai do menino fraquinho. Todo mundo calmo, escutando música, lendo livro. Aí o menino fraquinho grita: “Aê rapaziada da geral! Comuéquié?” E os livros voam e os caras do bem levantam com o canto de guerra dos anhangueras: “É pique, é pique, é pic, é pic, é pic, é hora, é hora, é hora, rá, TIM, bum, MAIS fraco, MAIS fraco”. E aí, graças ao merchandising bem feito, o menino mais fraco só teve que pagar uma multa.
Eu sei, as minhas histórias para crianças estão mais para boi dormir. Mas com isso consegui enrolar os meninos até chegar na escola.

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