terça-feira, 25 de março de 2014

O único com furo no meio


A proverbial inventividade de nossos marketeiros é velha conhecida e reconhecida até por Cannes, em numerosos festivais publicitários. Nossos campeões foram lá muitas vezes e saíram carregados de prêmios. Mas nossos historiadores sempre souberam dourar a pílula melhor do que qualquer um. Aqui é o país do maior isso, maior aquilo, tão bem incorporado na cultura de Itu, no interior paulista. Nós sempre fomos muito bons em auto-elogio desconectado da realidade. Nossas projeções e expectativas são auto-referenciais.

Prova disso é que uma das melhores peças publicitárias de que ouvi falar costumava ser atribuída a Luiz Carlos Bresser Pereira, na época em que trabalhava numa das agências do ramo. Rezava a lenda, lida em artigo de jornal, que Bresser recebeu a dura tarefa de fazer um comercial sobre uma pastilha colorida redonda, com formato de bóia de navio. O produto tinha o gosto tão bom quanto o do Drops, a grande pastilha que dominava o mercado da época. O domínio era tão absoluto que a denominação da marca já havia metonimicamente se confundido com o nome, como gilete para lâmina de barbear. Além de um concorrente exemplar, a pastilha-bóia tinha um problema de peso. Quase do mesmo tamanho que o drops, o formato de bóia a deixava mais leve que a concorrente. Bresser teria que convencer as crianças de que comprar menos pastilha era melhor. Mole pra ele. Dizem os brazucófilos historiadores da publicidade que Bresser não demorou nem dez minutos para matar a charada. Tascou logo o slogan: o único com furo.

Lenda, pura lenda. O slogan, se foi mesmo “bolado” por Bresser, era um plágio internacional. O produto era uma imitação das pastilhas bóia salva-vidas “Life Savers”, criadas nos EUA em 1912, inicialmente dirigidas ao combate do bafo-de-onça dos fumantes e bebuns com o slogan “For that stormy breath”. Depois, quando os caras perceberam que eram as crianças que estavam chupando as pastilhas(e fumando escondidas) dos pais, que pagavam caro por elas, inventaram o slogan chupado pelos brazucas: “The only with the hole”. Lenda, ou não, a historieta é ilustrativa das táticas de marketing ainda largamente empregadas no meio empresarial e político. Não só vendemos gato por lebre, como as campanhas se especializaram em vender menos por mais, o defeito como virtude.

Aqui em Brasília, nesta semana fomos assolados por uma gigantesca campanha de um programa de combate ao assédio sexual no transporte público. O governo local desovou um sem-número de peças publicitárias destinada a combater o encoxamento e estupro no transporte público. O problema é relevante, é óbvio que ninguém quer violência, estupros e bolinação desavergonhada e safadeza, com violência ou não, dentro dos ônibus e metrôs ou em qualquer lugar. Mas sem a superlotação e espremeção de gente no aperto de lata de sardinha dos coletivos e a presença dos seguranças, os predadores não agiriam. A super-concentração de pessoas boviniza a galera, desumaniza e deixa todos indiferentes e incapazes ao que se passa no centímetro quadrado apertado ao seu lado. A ausência de policiais, de efetivos repressores do crime, faz o resto. A propaganda oficial, no entanto, dá a entender que agora as mulheres estão protegidas. Será mesmo? De qualquer modo, a superlotação continua e não se tem notícia de nenhum programa para melhorar o transporte público da capital do país. Nem para deixar ruas e estações mais seguras.


Outra campanha que me chamou a atenção foi a de vacinação de meninas contra o HPV. A disparidade de faixas de público-alvo me deixou curioso. No Distrito Federal está sendo estimulada a vacinação de meninas de nove a 13 anos de idade. Em outros estados, a vacinação tem foco na faixa etária de 11 a 13 anos. Por quê começar tão cedo com as crianças daqui? A explicação oficial é de que nos próximos anos, a vacinação será feita na mesma faixa de 9 a 13 anos em todo o país. Não é o que está escrito no material explicativo distribuído nas escolas. O texto afirma que a campanha é dirigida para as crianças de 11 a 13 anos. Na Internet, as pessoas se mostram apreensivas quanto à possibilidade de ocorrência de efeitos colaterais e outros problemas relacionados à vacina. Outras pessoas afirmam que a eficácia da vacina é bem discutível e que a aplicação não elimina a necessidade de buscar acompanhamento médico especializado anualmente para as meninas. Ou seja, na prática, a vacina é uma medida preventiva, profilática, que não imuniza a criança contra o HPV. É diferente, portanto, de uma vacinação que imuniza contra a horrorosa poliomielite, e das tríplices, que nos protegem contra tétano, difteria, coqueluche, sarampo, rubéola e caxumba. Tomamos todas essas e estamos livres dessas coisas, não é mesmo? Pois com a vacina do HPV não é bem assim. Ela está mais para a linha de vacinas anuais contra a gripe, que eu não tomo desde que fiquei muito gripado na seqüência. O problema existe e é sério, milhares de mulheres sofrem com o câncer do colo de útero, que mata e esteriliza. Mas, vacinadas ou não, todas devem ir ao ginecologista pelo menos uma vez ao ano e é isso que faz a diferença. Enquanto isso, as meninas continuam expostas a uma erotização precoce e a uma permissividade excessiva, como furinhos na pastilha de uma pretensa imunização.

Comece a reparar. Talvez você esteja apenas sendo convencido a comprar menos pastilha porque ela tem um furinho no meio.

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