Usei botas ortopédicas durante uma porção de muitos anos. Era uma forma de tortura, é lógico, mas as mães não sabiam disso. E eu usava as tais botas. Eram brancas, as bandidas. Lembro de um modelo, especialmente incômodo, que tinha uma fivela no final do cano alto, Frankenstein aprovaria. Meus pés inchavam e doíam. Eu reclamava, mas os médicos diziam e as mães repetiam que aquilo era necessário para evitar um monte de outras coisas ruins. Eu não sabia quais eram as outras coisas ruins. Devia ser um terrorismo relacionado a escoliose, hérnia de disco ou coisa que o valha. Mas não importa. Na época das botas ortopédicas, eu queria liberdade. Eu odiava Ferrugem, o garoto propaganda dos calçados Ortopé. Minhas pragas rogadas, bem como de milhares de outras crianças torturadas, surtiram efeito. Ferrugem foi condenado a ser uma eterna criança obrigada a conviver com o refrão do seu comercial: Ortope, ortopé, tão bonitinho. Eu achava horrível, é claro. As botas, baixinho, franzino e míope com óculos de fundo de garrafa me transformavam num repugnante verme espacial mau humorado. Eu vivia irritado e a culpa era especialmente da bota. Como estava sempre irritado, eu vivia perdendo as estribeiras e apelava fácil. As primeiras vítimas estavam em casa. Eu chutava as pessoas na canela sob a menor provocação. Isso incluía adultos. Na época, alguns adultos também apelavam de volta, de vez em quando eu levava um cascudo ou um puxão de orelha só pra ver o que era bom pra tosse.
_Apelou pra bota! Apelou pra bota! - diziam os provocadores. Eu metia a canelada, sem dó.
Por isso fiquei feliz, muito feliz, quando parei de usar aquela droga odiosa de bota e ganhei um Conga. Sim, Conga é uma droga também, mas qualquer coisa é melhor do que uma bota ortopédica. Um adorava meu Conga azul. Sim, eu queria mesmo era um Kichute, mas o meu irmão tinha um, era só uma questão de esperar a minha vez. Essas coisas custavam caro. Um dia, o Kichute usado dele iria ser meu. O problema é que meu irmão tinha mania de jogar futebol todos os dias. E não fazia diferença, no gramado ou no cimento do futebol de salão, meu irmão usava o Kichute. Quando chegou a minha vez, o Kichute do meu irmão não valia uma gimba. Até os cardaços estavam rotos. Então ganhei outro Conga.
Tudo continuava numa boa, meu mau humor diminuía, a bota ortopédica era só uma lembrança, quando naquele ano eu mudei de escola. Putz. Novo uniforme. Uso obrigatório de sapatos. Quase chorei, foi uma lástima. Mas pelo menos eram sapatos pretos. Na primeira semana de aula, voltei a chutar canelas. Bastava calçar os sapatos para uma irritação maligna tomar conta dos meus pés e começasse a subir para minha cabeça, devagarinho. Na segunda-feira seguinte, dei início ao meu plano secreto para desgastar os sapatos o mais rapidamente possível. Ia para a escola a pé, era perto, e arrastava os pés o mais fortemente que podia. Eu calculava que bastaria uns 15 dias de pés arrastados para dar cabo daquele sapato. Mas na sexta-feira seguinte, o sapato Vulcabrás estava lá, firme e forte. Eu teria que incrementar o meu plano de desgaste sapatal.
Naquele mesmo dia, voltando da escola, já no elevador, decidi que iria incrementar o desgaste com chutes. E comecei naquele instante mesmo a dar chutes no elevador. Inclusive na porta sanfonada. Foi aí que prendi o pé e subi três andares arrastando o sapato numa posição impossível. Tive sorte de não quebrar nada. O couro do sapato foi lixado com toda força no espaço existente entre os andares. Nunca rezei tanto e tão forte quanto naqueles segundos em que arrastei o peito do meu pé direito por alguns andares. Para piorar, minha mãe me flagrou tentando disfarçar o sapato com graxa. Além de ficar de castigo, tive que usar o sapato preto recauchutado até o final daquele ano.
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