quinta-feira, 18 de julho de 2013

Train of thought - O fio da meada



Roberto Carlos - Eu Te Darei o Céu

Uma das novelas do Paul Auster, não me lembro qual, fala de um sujeito que é escritor, mas que só consegue escrever quando usa um caderno especial que encontra numa única papelaria de Nova York. O problema é que o estoque é bem limitado e a lojinha desaparece da noite para o dia. Em pouco tempo, o escritor já não tem mais o caderno mágico de escrever. É óbvio que se trata de um sujeito racional, ele não é nem um pouco supersticioso. Ele é até meio descrente de tudo, vive ironizando as pessoas que falam de sorte e azar, ri das pessoas que falam em transcendentalismo e até debocha das que se permitem a buscar explicações e conforto no divino. Não me lembro de como acaba, é um dos livros que preciso lembrar o nome e depois procurar na estante.

Sempre gostei muito dessa história porque às vezes eu me pego procurando um lápis que tenho há muito tempo e que eu chamo de "fio da meada". Eu chamo esse lápis assim porque às vezes acredito que ele me ajuda a encontrar uma linha a ser desenvolvida por alguns parágrafos. É ridículo, eu sei. Mas o fato é que funciona. Com o "fio da meada" por perto, eu só preciso riscar uma palavra de leve numa folha em branco para que as frases comecem a pipocar na minha cabeça e eu trate de ler meu próprio pensamento e ao mesmo tempo de escrevê-lo, o mais depressa que conseguir. Em geral, todas as frases desencadeadas pelo "fio da meada" fazem muito sentido e não preciso me preocupar muito com o encadeamento das coisas. Ele possui um ritmo próprio e instigante, como o de uma pessoa que está conversando com você, até com uma certa intimidade, mas não muita.

Houve um período de desânimo, é claro. Como qualquer artefato do balacobaco, "fio da meada" passou por várias fases inspiradoras e também por alguns tempos em branco. Algumas vezes, sem nenhuma razão aparente, eu precisava rabiscar vários parágrafos ou desenhar garatujas até que os parágrafos e mais parágrafos começassem a efervescer na minha mente. Em outras, bem poucas, nada acontecia. Era como se o lápis tivesse um detector de ansiedade que o impedisse de funcionar. Ele também não funcionaria se eu estivesse muito alegre, ou infeliz demais, ou com sede, fome ou se dormisse muito pouco. O mesmo aconteceria se eu estivesse com muita preguiça, se comesse demais, ou se estivesse com uma música presa na cabeça. Também reparei que se eu ficasse algumas semanas sem ler um livro, "fio da meada" funcionaria de um jeito capenga, como se precisasse recarregar as baterias.

De modo que, com o passar dos anos, fui descobrindo com o lápis que a escrita exige um sentimento específico, uma disciplina diária e um esforço contínuo. E tudo isso é volátil e melífluo como são as palavras. Não vou dizer que tudo o que eu escrevo foi soprado pelo "fio da meada", mas confesso que uma boa parte das melhores coisas que já consegui colocar no papel só saíram pelas pontas dos meus dedos depois que eu risquei um pouquinho com esse lápis. Não precisa ser muita coisa, basta uma palavra. O grande problema é que eu uso esse lápis há muitos e muitos anos e agora o "fio da meada" é só um pitoco. Ando com ele para baixo e para cima, junto com um bloquinho, que não tem nada de especial, é só papel. Uma vez fiquei desesperado porque meu lápis foi parar dentro da máquina de lavar roupa, no bolso da minha calça jeans. Perdi um bloquinho, mas tudo bem. O problema foi com o pitoco. Durante semanas, foi como escrever com tinta invisível, meus sujeitos, verbos e predicados desapareciam no meio de frases descoordenadas, inchadas e úmidas. Uma outra vez, perdi uma ponta do grafite de uma só vez depois que deixei "fio da meada" cair no chão. Foi terrível. Tive que fingir que era um poeta modernista, nada fazia muito sentido.

Pretendo me preparar para o dia em que o "fio da meada" estará definitivamente terminado. Já não tenho muito tempo.

Roberto Carlos - I Will Give You Heaven

One of the novels of Paul Auster, I do not remember which, tells of a guy who is a writer, but he can only write when using a special notebook that is found only at this unique stationery from New York. The problem is that the stock is very limited and the shop disappears overnight. Before long, the writer has no more magical notebook to write. It is obvious that this fellow is a rational subject, he is not a bit superstitious. He is halfway skeptical of everything, living mocking people who speak of chance, laughs at people who talk about transcendentalism and even mocks those that allow themselves to seek explanations and comfort in the divine. I do not remember how it ends, this is one of the books I have to remember the name and then look on the shelf.

I've always loved this story because sometimes I find myself looking for a pencil that I have for a very long time. It´s a very special pencil for me, that´s why I call it the "train of thought". I call this pencils so because sometimes I think it helps me to find a line to be developed for a few paragraphs. It's ridiculous, I know. But it works. With the "train of thought" close, I just need a word lightly scratching a blank sheet for the phrases start popping in my head. All I have to do is to read my own thinking while writing it, as soon as I can. In general, all the phrases triggered by "train of thought" make sense and I do not need to worry too much about the sequence of things. He has a self-paced and exciting way, like a person who is talking to you, even with a certain intimacy, but not too much.

There was a period of discouragement, of course. Like any triggery artifact , "train of thought" has gone through several phases and also inspired me for some blank pages. Sometimes, for no apparent reason, I needed several paragraphs scribble or even drawn up some doodles in order to make paragraphs and paragraphs began to bubble over in my mind. In other times, very few, nothing happened. It was as if the pencil had a detector of anxiety that prevented him from working. It would not work if I was very happy, or unhappy too, or thirsty, hungry or sleep very little. The same would happen if I was too lazy, if I ate too much, or if I had a song stuck in my head. I also noticed that if I stayed a few weeks without reading a book, "train of thought" would work in a way lame, as if to recharge.

So, over the years, I discovered with pencil writing requires a specific feeling a daily discipline and sustained effort. And all this is volatile and mellifluous as words are. I will not say that everything I write has been blown by "train of thought", but I admit that a good portion of the best things that ever got put on paper just came by my fingertips after I scratched a little with this pencil. There were no needs to be much, just a word. The big problem is that I use this pencil for many, many years and now the "train of thought" is just a little stick. Walk with it down and up, along with a pad, which has nothing special, it's just paper. Once I was desperate because my pencil got into the washing machine, in the pocket of my jeans. I lost a pad, but that´s ok. The problem was with the "train of thought". For weeks, it was like writing with invisible ink, my subjects, verbs and predicates disappeared in the middle of sentences uncoordinated, swollen and moist. Another time, I lost one huge piece of the graphite at once after I left "train of thought" fall to the ground. It was awful. I had to pretend I was a modernist poet, nothing made sense.

I intend to prepare for the day when my "train of thought" is definitely over. I do not have much time.

Um comentário:

Anônimo disse...


O artista deve ter disciplina para, diariamente, exercitar o seu ofício.

Lembrei aquela frase do Picasso: "Que a inspiração chegue não depende de mim. A única coisa que posso fazer é garantir que ela me encontre trabalhando."

Gostei de tudo que eu já li do Paul Auster, do mesmo jeito que gosto dos seus textos. Obrigada por eles.

Abração

Tina

Frase do dia