quinta-feira, 29 de novembro de 2007
Pássaros
Eu nunca gostei de caçar. Nada. Nem passarinho. Mas uma vez saí com meu irmão e dois primos para caçar passarinho. Fomos para a periferia da cidade onde nascemos, em Goiás. Ainda existiam alguns pedaços de mato. E ainda existiam pequenas fazendas em volta da cidade. Andamos um bocado e escolhemos alvos diversos no caminho. Calangos, romãs, goiabas, latas, garrafas, mamão, uma porção de coisas. Só sei que gastamos um chumbo danado. Quase no final, só havia um chumbinho para cada um.
Aí nós chegamos numa fazendinha muito legal, com uma bela cerca de arame coberta de maracujás. Além da cerca, havia um enorme quintal coberto de palha de arroz. No centro, uma única árvore, uma mangueira. Nessa árvore, milhares de pássaros se amontoavam.
Ficamos bem quietos e vimos algumas dezenas deles mergulhar na palha de arroz. Um pequeno movimento e flop! Os pássaros voltavam para a árvore. E depois de um breve silêncio, a algazarra que os bichos faziam poderia ser ouvida a um quilômetro de distância. Aliás, foi por isso que encontramos a fazendinha.
Aí meu irmão, que era o mais velho, disse que não ia atirar. Disse que atirar em tantos bichos de uma vez era covardia. Disse que era melhor deixar os passarinhos vivos e contentes. Disse que o covarde que atirasse não tinha chance de errar. Disse que o covarde que atirasse podia esquecer que era amigo dele. E disse para irmos embora.
Mas os primos queriam pelo menos atirar. Eu também. Ivo foi o primeiro, mirando sem capricho em um pássaro no chão, quase ao pé da mangueira. Um alvo fácil. Facílimo.Pum. Passou perto, mas só o que fez foi provocar uma ligeira debandada de pássaros. Ivo era o melhor atirador do grupo. Era óbvio que havia errado de propósito.
Continuávamos escondidos e quietos. Logo os bichos voltaram. Foi a vez do Carlaile. Acho que também mirou com preguiça, num passarinho no chão. Alvo próximo e fácil. Errou. Carlaile, quando queria, atirava melhor do que meu irmão, que era o segundo melhor atirador do grupo. Nova debandada. Nova espera em silêncio. E era a minha vez.
Olhei para o meu irmão. Ele voltou a dizer que atirar naqueles bichos era covardia. E também voltou a dizer que o covarde que atirasse naqueles passarinhos podia esquecer que era amigo dele. Olhei para os primos. E sem dizer nada, apontei com cuidado para o centro da mangueira. A mira daquela espingarda de chumbo era meio torta, você tinha que dar um pequeno desconto para a direita. O gatilho era leve. Bastava um puxão do indicador. Mirei e mirei. Podia sentir os olhos do meu irmão queimando a minha nuca. No final, fechei os olhos e atirei. Pum!
Abri os olhos e vi um pássaro cair da árvore. Centenas deles voaram imediatamente para outro lugar. No silêncio que se seguiu, só o que eu conseguia escutar era o bater de asas do pássaro que eu havia acertado. O bicho se debatia sobre a palha de arroz. O barulho era o mesmo de uma borboleta batendo as asas perto do seu ouvido.
_Mas por quê você fez isso? – gritou o meu irmão.
E a verdade é que eu não sabia. Ainda não.
_Agora vai lá e pega o passarinho – ordenou.
Eu obedeci. Quando peguei o pardal, sua cabeça pendia mole, já não havia movimento nenhum.
Meu irmão ficou o resto da semana sem falar comigo. Nunca mais caçamos nada.
Mas até hoje, quando olho para o meu irmão, percebo em seu olhar uma tristeza, um senão, como se eu tivesse acabado de matar um passarinho.
quarta-feira, 28 de novembro de 2007
Oleta Adams
“Tears for Fears” é o nome da dupla que fez um bruta sucesso no tempo em que eu carregava CDs para as festas. Nós escutávamos os caras o tempo inteiro. E nós éramos todos nós, os jovens. O Tears tinha um som meio alegre, meio triste, assim como quem não quer nada. E era bem como a gente se sentia, no meio de um monte de coisa acontecendo e sem saber em que lado entrar. E no meio de todas aquelas coisas meio tristes e meio alegres, uma música era especialmente bonita e triste: “Woman in Chains”. E no meio dessa música, aparecia a voz de uma mulher, especialmente bela e triste. Era a voz de Oleta Adams.
E aqui - oh, meus amigos – é possível encontrar um disco inteiro da bela Oleta:
http://avaxsphere.com/music/rnb/oletaadams_theverybestof.html .
E abaixo, o post completo do sujeito que fez esse favor para a humanidade;
Oleta Adams - The Very Best Of Oleta Adams (1998)
Posted By: lliwas | Date: 28 Nov 2007 06:03 | Comments: 0
Oleta Adams - The Very Best Of Oleta Adams (1998)
Jazz, Slow Rock | Universal/Spectrum | MP3 @ 320 kbps = 166 MB | Flac = 436 MB | 16 Tracks | 72:55
Review:
Her name may not be as instantly recognizable as Anita Baker's, but if you're a fan of Baker, you're bound to love Adams. After working toward a solid reputation in her native Kansas, she was discovered while working a hotel-lounge gig by Roland Orzabal of Tears for Fears and became one of the band's regular guests (their "Woman in Chains" is included here). This collection includes an impressive list of contributors (including Irene Cara on backing vocals) and worldwide hits like "Get Here," an emotional tearjerker that showcase's Adams's amazing voice. Many tracks veer into MOR territory (what else can you expect with a cover of "Don't Let the Sun Go Down on Me"?) and straight-out-of-a-musical style ("Embraceable You"); if you're looking for more funk in your soul, your best bet is "Rhythm of Life." --Rebecca Wallwork
The Very Best of Oleta Adams primarily consists of material from her first three albums. The big mystery of this 1998 collection is the lack of material from 1990's Circle of One, by far her strongest and more musically varied set of songs. A mere three tunes are included here: "Get Here," the Soul II Soul-styled "Rhythm of Life," and the rousing "Circle of One." Her weaker second album, Evolution, however, is represented by no less than five tracks, and four songs from Moving On also appear. The Very Best of Oleta Adams also includes material that was never previously available on an Oleta Adams album. Tears for Fears' Seeds of Love hit "Woman in Chains" is here, and Adams' pitch-perfect vocal harmonies play off Roland Orzabal's melodramatic bombast surprisingly well. Though a more subtle arrangement may have been more successful, her rendition of "Don't Let the Sun Go Down on Me" (which appeared on the Elton John/Bernie Taupin covers album Two Rooms in 1991) is performed with such gusto Elton John's version pales by comparison. Adams also shows off her astonishing range on the Gershwin classic "Embraceable You" and a nice reading of Jimmy Cliff's "Many Rivers to Cross." Although The Very Best of Oleta Adams lacks two of her best performances -- Circle of One's gorgeous version of "Everything Must Change" (which has been recorded by countless artists, including Gene Harris, Nina Simone, Carmen McRae, and Barbra Streisand) and the aforementioned "New York State of Mind" -- it is a pleasant collection that showcases Oleta Adams' beautiful voice, even on lackluster material. ~ by William Cooper, www.allmusic.com
Tracks:
1. Rhythm of Life
2. Don't Let the Sun Go Down on Me
3. Never Knew Love
4. Get Here
5. Hold Me for a While
6. Many Rivers to Cross
7. Circle of Love
8. My Heart Won't Lie
9. Lover's Holiday
10. Embraceable You
11. We Will Meet Again
12. Love Begins at Home
13. I Just Had to Hear Your Voice
14. Woman in Chains - Oleta Adams, Tears for Fears
15. I Knew You When
16. Window of Hope
terça-feira, 27 de novembro de 2007
Complexo de vira-lata
Eu tenho complexo de vira-lata. Como diria um alcoólatra, a melhor maneira de enfrentar o problema é de peito aberto. Você tem de admitir a coisa em alto e bom som. Sou um vira-lata. Ou melhor. Acho tão profundamente que sou um vira-lata, que chego a ser o vira-lata que sou.
Mas primeiro é preciso saber o que é um vira-lata. A definição do que é um vira-lata no dicionário é “cão-de-rua, que não é de raça”. Isso é breve e preciso.
Todo mundo já viu um. Vira-latas ficam sobre duas patas e abanarão o rabo ao menor gesto de carinho. Se você coçar a cabeça de um vira-lata, ele o seguirá até a porta da sua casa. Se lhe der um pouco de comida, ele o seguirá até a porta da sua casa e pegará a chave debaixo do tapete. Se você lhe der um pouco de comida e água, ele pegará a chave, abrirá a porta da sua casa, ligará a tv no canal de esportes, lhe trará os chinelos e uma cerveja gelada. Cães de rua são legais e fariam qualquer coisa por um lar.
Mas a definição do dicionário não esgota o assunto. O vira-latas é, antes de tudo, um estado de espírito. Vira-latas parodiam Fernando Pessoa.
segunda-feira, 26 de novembro de 2007
Poema abduzido
Quebrei meu jejum de palavras
Com um verso esturricado
Nem faz tanto tempo assim
Deixei meu coração ao sol
E ele secou um bocado
nas pontas
Depois, só recolhi dor e cansaço
Coloquei de volta um cofre no meu peito
Hoje guardo prazeres, raiva e um gesto
De grandeza que recebi de um inimigo
Na hora certa, e será mais cedo do que se pensa,
Devolverei essa chaga que me atormenta
Com seu pedido de socorro
Gritarei palavras ao vento
Terei pedras na boca
A tropeçar na retórica dos anos descalços
Comprarei amanhã
Com o ouro dos tolos
Um soneto triste para pendurar
Na varanda dos dias melhores
Que nunca, jamais, veremos
Pois estamos presos,
Acorrentados,
Ao monstro que nos devora o fígado
E não há perdão para quem não perdoa
E não há canção para quem não perdoa
E não há poesia para quem não perdoa
Mesmo assim,
Comprarei amanhã,
Com a prata da casa
Um verso obsceno e triste para estampar
Numa camiseta de algodão
Que em tempo algum
Usaremos
Pois fomos abduzidos,
E estamos nas entranhas
do triste fim dos dias alienados
sábado, 24 de novembro de 2007
Bloc Party
Ontem eu não postei nada e estou deprimido até agora por isso. Tem uns dias em que nada parece funcionar direito. Ontem foi assim. Não funcionei. Aí fiquei um bom tempo no You Tube e encontrei um vídeo excelente de gols do Ronaldo, o Fenômeno. Genial. Alegrou o meu dia. E então aconteceu algo sensacional, oh, meus amigos, pois encontrei uma música inspiradora chamada “Helicopter”, de uma banda inglesa chamada Bloc Party. E é claro que me deu uma vontade danada de gravar numa fita e correr para levar ao carro e dar uma banda pela cidade.
Estou brincando. Mas não era assim que se fazia? Você encontrava uma música sensacional, gravava e ia correndo mostrar para todos os seus dois amigos. E aí, saíam todos para tomar uma cerveja, com o walkman Sony de metal de um deles, quase do tamanho da fita cassete, ligado e passando de mão em mão. E ali, no Zeppelin, com apenas duas cervejas, todos estariam caindo de sono sobre as mesas, mas com o disco novo dos Rolling Stones, Tatto You, praticamente decorado ainda ecoando nos ouvidos. Antes de ir embora, dividir um crepe de banana com açúcar e canela ou encarar um sanduba.
Largo a lembrança de lado, pois hoje é muito diferente. E a banda Bloc Party é realmente muito legal.
Confira aí, no endereço http://www.youtube.com/watch?v=0-6k3-8WjUQ .
Tem essa também: http://www.youtube.com/watch?v=HH2Bbb5ZUug&feature=user .
E também essa aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ttcboE1GrNg&feature=user .
E amanhã vou ver se coloco alguma coisa decente.
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
Preferências
Não conte comigo para um bocado de coisas. Passeatas, por exemplo. Detesto passeatas. Aqui nessa cidade, toda semana tem passeata e nenhuma adianta coisa alguma. Os caras que participam aparecem em flashes de alguns segundos nos telejornais e pronto. Não se fala mais no assunto. Até porque no dia seguinte tem outra passeata e os telejornais e jornais darão destaque à manifestação do dia. Os 15 minutos de que falava o Warhol viraram 15 segundos e pronto. Ninguém da cidade perde tempo com isso.
Lavar carro no final de semana. Ta bom. Isso é da idade. Fazia sentido quando eu tinha 17 anos, não tinha carteira e essa era a única forma de ficar com as mãos nas chaves do carro. Mas ainda hoje, com crise de água, ecochatos e “clima change” você dá uma volta pela cidade e ainda encontra um monte de caras gastando um dilúvio de água e lustrando o carro mil com aquele sorriso de luxúria no rosto. Dá uma pena danada.
Também não conte comigo para jogar baralho. Pôquer, truco, tuíste, canastra, qualquer dessas coisas me enchem de tédio. Aliás, não me chame para qualquer jogo. Um estádio, de vez em quando, pode ser. Mas o resto, estou fora.
Não me chame para shows de chorinho. Aquele povo do violão, viola, cavaco, cavaquinho, reco-reco, flauta e pandeiro são instrumentistas de mão-cheia, são artistas magníficos, mas têm uma conversa para boi dormir que me irrita o fígado. Não é à toa que são tão apreciados no exterior. Lá fora ninguém entende as piadas e as historinhas babacas que eles gostam de contar.
Esqueça o meu nome quando o programa for passear de bicicleta, correr ou andar no parque da cidade. Eu adoro fazer tudo isso, especialmente no parque da cidade, mas gosto de fazer sozinho. Em academia, ou estou na piscina ou malhando com fones de ouvidos. Se quiser conversar comigo, me espere do lado de fora.
Não me peça dinheiro emprestado. Eu não tenho dinheiro. E se tivesse, cobraria mais juros do que um banco.
Não me peça conselhos. Não me dê conselhos.
Não conte em me vencer por insistência. Só me ofereça o que tiver de oferecer uma única vez. Se eu aceitar, legal. Se eu não aceitar, não insista.
Não diga que eu estou nervoso. Existem poucas coisas que deixam o ser humano nervoso imediatamente. Essa é a principal.
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
Uma espada laser
Um dia, foi idéia do meu irmão, eu terei que escrever um texto sobre meu pai. É uma coisa que eu fico adiando. Tenho medo de magoá-lo. Sei lá. É difícil. Eu tento passar a pelota para meu filho. Quem sabe ele, na inocência dos quatro anos, não me ajuda nessa tarefa?
_O que você acha do vovô? - eu pergunto para meu pequeno super-herói.
_Ele é legal.
_Se você fosse dizer uma coisa para ele, o que você diria?
_Agora?
_Agora.
_Vô, me dá uma espada laser?
_Não. Isso não vale. Tem que dizer uma coisa sobre ele. Tipo assim: Vô, seu cabelo é bonito.
_O cabelo dele é branco.
_É só um exemplo. Pode falar qualquer coisa.
_Qualquer coisa.
_Engraçadinho.Com quatro anos e já tem um programa de auditório. Anda, diz alguma coisa sobre o vovô.
_Puxa, pai. Larga do meu pé.
_Só preciso ouvir uma coisa sobre o vovô. Ou então eu desligo o vídeo-game.
_Vô, quando eu crescer eu quero ser um samurai igual a você.
_Samurai? Mas esse é o seu outro avô...
_Ah, pai, me deixa brincar.
Meu filho também sempre dá um jeito de escapar pela tangente.
Peço ajuda para a Patroa.
_ Quero escrever uma coisa sobre o meu pai, mas não consigo pensar em nada. Estou sem idéias. Se você fosse dizer uma coisa para ele, o que você diria?
_Pai, me dá uma espada laser?
_Não vale – eu digo. Você estava escutando.
_Ih, Careca, você sempre diz que só consegue escrever sobre o que você sabe. Talvez seja a hora de mudar. Use a imaginação. Escreva sobre o que não sabe. Invente um pai. Ou invente um outro você. Ou escreva sobre o que você gostaria que tivesse acontecido. O que você gostaria de dizer para o seu pai, que nunca disse antes?
_Pai, me dá uma espada laser?
terça-feira, 20 de novembro de 2007
Adesão involuntária
Existem poucas coisas mais desagradáveis do que ouvir a professora na escola dizer que sua filha de 3 anos está com piolhos. A primeira reação é negar completamente.
_Minha filha? É impossível. Eu mesmo dou banho nela todos os dias e ela nem sequer está coçando a cabeça. Impossível.
E aí você olha para a menina e ela está levando a mão até a cabeça. E coça a cabeça. E faz careta enquanto coça.
_Minha Santa Genoveva!
Aí você admite, com ressalvas.
_Deve ter sido nesse final de semana!
_Achei um monte de lêndeas – diz a professora.
E por mais estúpido que você seja em matéria de piolhos e parasitas em geral, você sabe que demora um pouco para um bicho começar a ter filhotes na cabeça dos outros.
_Amanhã ela não vem – você admite a derrota, envergonhado.
Cheguei em casa arrasado. Minha filha com piolhos. O que é que eu estou fazendo de errado? Dou três banhos por dia. Uso shampoo dia sim, dia não. Penteio com cuidado a cabeleira. Que vergonha. Que vergonha. Espero a Patroa chegar, conto a novidade rapidamente e corro para a farmácia.
_Tem remédio para piolho? – eu pergunto ao balconista assim que aterrissei na farmácia. O balconista me olha com um misto de riso, superioridade, nojo e pena. Afinal, eu sou um careca com um tufo de cabelo na nuca. Mas talvez eu tenha me enganado, e o olhar só tivesse superioridade e nojo.
_Neocid? Tem neocid? – eu insisto, lembrando o nome do mata-piolhos que minha mãe usava na gente, quando éramos crianças e inocentes.
_Neocid? Não sei se tem. Mas tem vários outros – o balconista se digna a responder, evitando a proximidade com a minha careca e meu tufo de cabelos.
Fiquei ali, esperando uns 5 minutos. O balconista, agora sério e sem demonstrar desprezo, voltou com uma touca transparente na cabeça e trouxe uma porção de remédios para piolhos. Como qualquer coisa hoje em dia, existem remédios de todas as marcas, tamanhos, cores e preços. Escolhi uma embalagem com um design ajeitado, que prometia acabar com toda a praga de piolhos em apenas dez minutos. De lambuja, o remédio me dava um pente fino. Comprei um pra cada um lá de casa, dois para a Patroa, e várias toucas descartáveis. Na fila do caixa, as pessoas se afastavam ao perceber o que eu tinha nas mãos. Na minha hora de pagar, cocei o tufo na cabeça com força, para desespero do caixa e da velhota que estava atrás de mim, na fila interminável. Caramba, como tem fila nessa cidade!
Voltei pra casa triunfante.
_Eu tenho a cura – gritei para a Patroa, assim que ela abriu a porta.
Fomos todos lavar as cabeças para passar o remédio. Eu não tenho muito cabelo para lavar, mas disfarcei bastante. Depois ficamos muitos minutos catando piolhos, um na cabeça do outro, usando os pentes finos para pegar os bichinhos. Parecíamos um bando de macacos. E tive que ralhar com o mais velho, de quatro anos, que toda hora fazia menção de levar um piolho capturado até a boca.
_Está envenenado. Não pode – eu dizia.
No final, só encontramos piolhos nas crianças. Aí fizemos uma lista de quem tínhamos encontrado nas últimas duas semanas. Passamos uma hora ao telefone avisando a todos sobre a possibilidade de haver piolhos em suas cabeças. Duas pessoas haviam suspeitado da existência do parasita naquele mesmo dia. Pediram dicas de remédios. Expliquei tudo direitinho. E ainda recomendei altivez e bravura na hora de pedir o remédio no balcão da farmácia.
_Chegue bem perto, mas bem perto do balconista, como se fosse contar um segredo. Aí diga bem alto que está com piolho – falei.
Depois de seguir as minhas recomendações, uma das pessoas(vou preservar o nome da criatura) me ligou de volta. Da delegacia.
_O balconista tinha aquelas tranças de rastafari, as dreadlocks – ele me explicou. Achou que era um atentado racista no dia da consciência negra.
_E era?
_Claro que não. Mas o delegado é irmão da mulher dele e não quer nem saber. Só saio daqui se raspar a cabeça.
_Bem-vindo ao meu mundo, colega. Quer que eu vá te buscar?
segunda-feira, 19 de novembro de 2007
Aeroporto 2007
Chegamos três horas antes do horário marcado para o vôo e ainda assim a fila era gigantesca. Todo mundo estava precavido. O caos aéreo já determinava alterações significativas de comportamento. Há um ano, todo mundo chegava em cima da hora no aeroporto. Muitos reclamavam quando encontravam uma fila. Agora não. Poucos reclamam. Na longa, enorme fila, um passageiro, de bermuda e camiseta, tenta puxar conversa conosco.
_ Está demais, não é? Agora deixam qualquer um pegar avião. A passagem a esse preço. Onde já se viu? E aí é essa fila.
_ Mudou muita coisa, amigo. Na primeira vez que eu viajei de avião, meu pai falou para usar um terno completo. E foi o que eu fiz. De colete e tudo. E todo mundo estava becado.
_Eu gosto de viajar de camiseta e bermuda. Ainda mais para Salvador...
E a conversa morreu. Se houvesse um campeonato de matador de conversa, eu ganharia de lavada. Meu amigo, que também ia para Salvador, tentou ressuscitar o papo.
_Mas viajar de carro é pior. As estradas estão em frangalhos, não oferecem a menor segurança. Por terra, nem pensar, não há a menor condição - disse o meu amigo.
_É verdade. Está uma buraqueira danada, tem muita gente imprudente e todo mundo só anda chutado – disse o sujeito de camiseta, satisfeito por encontrar um cara normal e conversar.
_É e ainda tem os caras do Carro Mil. – eu disse.
_Que caras? – perguntou o de camiseta.
_Eles estão espalhados pelo país. Em todos os estados e em todas as estradas.
_Quem são eles? – perguntou o meu amigo que também viajava para Salvador.
_Os caras que compram carro mil com 60 prestações e pegam a estrada. E entopem o carro de amigos. E enchem a cara. E ainda querem ultrapassar o caminhão na subida.
_Esses caras são f.....!
_Bota f....... nisso!
_Mas ainda tem pior – eu disse.
_Pior?
_É. Mil vezes pior – eu assegurei.
_Não é possível – duvidou o sujeito de camiseta.
_Os caras do Carro Mil pelo menos estão com um carro novo na estrada. A turma do Opalão Preto é mil vezes pior.
Os dois me olhavam como se estivessem assistindo a uma versão não legendada de “A Bruxa de Blair”.
_Pode ser Belina Azul, Brasília Amarela, qualquer carro fora de linha. Já vi muito Opalão Preto. E a turma do Opalão Preto não liga a mínima para os pneus carecas, para os faroletes quebrados e para nada. A turma do Opalão Preto tem um monte de adesivos no que resta do para-choque. Os plásticos afirmam para o resto do mundo que eles, naquele rebotalho de automóvel, são mais filhos de Deus que eu, você e os outros otários que cuidam de equipamentos de segurança.
Deixei que eles pensassem um pouco sobre aquilo. Depois eu disse:
_É melhor voar.
_É.
E a conversa morreu para sempre. Aliás, o cara de camiseta virou as costas em seguida e não olhou mais para trás. Meu amigo, depois do check in, me perguntou se eu faço isso de propósito. Eu respondi que não. É um talento que eu tenho. Matar conversas. Encerrar discussões e papos-cabeças com opiniões definitivas, arrasadoras. Acabar com a encheção de lingüiça. Acabar com o passatempo. Não posso fazer nada contra isso.
sexta-feira, 16 de novembro de 2007
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
Choque anafilático
Na mesma época que eu descobri que poderia ficar surdo, mudo e amnésico ao ver uma supermodelo, mesmo que à mesma distância de um salto triplo do João do Pulo, também descobri que poderia sofrer um choque anafilático.
Eu desconfiava disso. Só pode ser de família. Meus irmãos são hipersensíveis a algumas substâncias. Minha irmã mais velha, por exemplo, não pode nem chegar perto de frutos do mar. Camarão, caranguejo, lagosta, ostra, marisco, lula, tudo isso pode provocar reações muito desagradáveis e perigosas. Basta dizer que uma vez ela quase morreu porque comeu um inocente risólis. O recheio era de frango, mas o danado tinha sido feito no mesmo óleo que os risólis de camarão. Como resultado, ela ficou dois dias internada, inchou feito um balão, teve uma crise respiratória gravíssima e faturou um milhão de euros em indenização do buffet que serviu a bomba para ela, em Londres, na Inglaterra.
É. É só lá fora que indenização dá grana, gente. Aqui, e isso é só uma hipótese, mesmo se o ministro dos transportes voltar trolado de um churrasco e atropelar um funcionário público na rua a indenização será uma mixaria de cestas básicas. E ainda vão querer culpar o funcionário público. Ainda mais se ele for lixeiro.
Lá fora, não. A menos que você seja estrangeiro. Aí primeiro vão querer te acusar de terrorismo. Como aconteceu com a minha irmã. Para você ter uma idéia, deitada, na cama do hospital, ela ficou muito parecida com o Bob Esponja pintado de cor-de-rosa. Aproveitando-se disso, o buffet divulgou, por meio de um tablóide especializado em sacanear a Britney Spears, uma foto da minha irmã no hospital e a informação de que ela já havia dado o “golpe do anafilático” em buffets da Espanha, França e Alemanha. Foi o bastante para o caso se transformar em escândalo nacional. Ou melhor, transnacional, já que estamos falando do Reino Unido.
A sorte é que ela ainda não tinha visitado a Alemanha. E os buffets da Espanha e da França haviam fechado as portas depois que pagaram as indenizações devidas. Por causa disso, a opinião pública transnacional da Grã-Bretanha acabou ficando do lado dela. Nas ruas, as pessoas, especialmente os clandestinos, torciam para que ela ferrasse com o buffet. Outros queriam que ela se mudasse para a Alemanha e ferrasse com os buffets de lá. Outros achavam que a Britney Spears era mais magra. E alguns malucos achavam que ela já tinha sido o Bob Esponja de um dos filhos de Charlie e Diana.
Mas ela não fez nada disso. Entrou em acordo e recebeu a bolada. Teve muita sorte, pois um marisco, lula, dilma ou até mesmo uma lagosta teriam sido fatais. Hoje ela pensa muito em sair de Londres, porque não agüenta mais aquela maresia de sanidade, aquele jeitão das coisas funcionarem, toda aquela ordem, paz, segurança e tranqüilidade. Mas eu sei que no fundo, no fundo, no fundo, ela quer mesmo é voltar para a terrinha. Da Edith Piaf.
Ela diz que aproveita todo o tempo livre que tem para fazer as malas. Nesse ritmo estará com tudo pronto para se mudar para Paris antes do Natal. A Patroa diz que ela está enrolando, mas devo dizer, em defesa da minha querida irmã, que são muitas malas. E algumas são Louis Vuitton. Acho que é possível que ela esteja com um pouquinho de medo de encarar mais uma temporada numa cidade fantástica, num país sensacional, onde tudo também funciona direito e você é bem tratado se souber falar francês e escolher o vinho certo. (Continua)
terça-feira, 13 de novembro de 2007
Eu não sei como traçar uma supermodelo II
_Preciso ir ao banheiro – eu disse.
A Patroa juntava umas coisas que tinham escapulido da bolsa. Eu saí de fininho e fui até o banheiro. Meu supercílio esquerdo deixaria Robert de Niro (O Touro Indomável, Táxi Driver, Frankenstein, Cassino e Os Bons Companheiros) com inveja. Estanquei a sangueira com um pedaço de papel. Felizmente estava com a minha jaqueta de couro. Foi só puxar o zíper para esconder a camisa suja.
O que estava acontecendo comigo? Como era possível sair do ar durante 15 minutos só por ter visto uma supermodelo? Como eu faria para me desculpar com a Patroa? Coitada. Ela estava ali, chegando de uma viagem difícil. Tinha ido trabalhar duro para ganhar dinheiro para gastar comigo e as crianças. Tinha viajado numa poltrona desconfortável, na primeira classe, até o Rio de Janeiro. A Patroa, a trabalho, tinha ido a três shows e duas peças de teatro naquela semana. Tinha, por obrigação, freqüentado os cinco melhores restaurantes da cidade maravilhosa naqueles dias sofridos. E, além de tudo, tinha acordado tarde todos os dias.
Eu, por outro lado, tinha ficado no bem-bom daqui de casa, à toa feito um desempregado. E ainda por cima, acordando cedo, às seis e meia, para preparar a mamadeira das crianças. Como choveu uma semana, direto, com pequenas enchentes sendo registradas nessa cidade, tive que ficar sete dias enfurnado no apartamento. E você sabe a delícia que é pajear crianças em sete dias de chuva? Só posso dizer uma única coisa: Noé deve ter enlouquecido.
O fato é que a Patroa estava esgotada. Eu estava cansado de não fazer nada. E ainda por cima não tinha visto, ouvido ou reconhecido a Patroa no momento em que ela me acertava bolsadas. Todo mundo sabe que a bolsada é uma legítima demonstração de apreço e carinho de uma mulher para o homem que a ama. Não, senhor. Não, senhora. Eu teria que me desculpar do melhor jeito que pudesse. Por isso, me ajeitei mais um pouco e saí do banheiro com um plano bem definido. Tudo seria resolvido. A Patroa iria me perdoar.
Encontrei a Patroa no saguão principal. Chamei por ela, com um pedido de desculpas bem ensaiado na cabeça. Mas ela parecia estar em outro pedaço do planeta. Olhava fixamente, de boca aberta, para uma pequena aglomeração de fotógrafos esvoaçando em torno de uma figura alta e atlética. Parecia com o Gianechini.
segunda-feira, 12 de novembro de 2007
Eu não sei como traçar uma supermodelo
O mais perto que eu cheguei de uma supermodelo foi mais ou menos a distância que consagrou o nosso João do Pulo : 17 metros e 89 centímetros. Eu estava no aeroporto da cidade. E a supermodelo era uma moça loira, cercada de fotógrafos como uma ilha. Por todos os lados. Ao se mover, ela provocava uma revoada de câmaras e gente, como se todos esvoaçassem em torno dela. Acho, não tenho certeza, que era a Ana Hickmann.
Aquela mulher no aeroporto era o sal da terra, em se tratando de beleza. Se eu fosse um cineasta, ela seria um filme destinado ao Oscar. Se eu fosse traficante, ela seria a rainha da cocada branca e da preta também. Se eu fosse um escritor, de verdade,, ela seria Moby Dick, de Melville e também as obras completas de Dostoiévsky. Grande. Majestosa. Estupenda. Parecia um iceberg inatingível. E, no entanto, era o tipo de mulher que deveria ser mantida, por medida de segurança, bem distante das calotas polares. Com um mero sorriso ela era capaz de derreter corações empedernidos. Um decote mais profundo e todas as placas tectônicas seriam chacoalhadas e sairiam do lugar. Com um movimento dos lábios, ela provocaria maremotos, enchentes, tsunamis e furacões. Era demais.
Mas nem se eu tivesse as pernas e o talento do João do Pulo teria conseguido me aproximar dela. Eu sou um covarde quando se trata de chegar perto e falar com mulher supermodelo ou muito super-bonita. É um medo ancestral, daquele de gente que não leva muita confiança no seu código genético e que por isso é tímido. Com supermodelos, essa insegurança genética também se manifesta com uma amnésia e surdez temporária. Desse modo, seja lá qual fosse a supermodelo que vi naquele dia, ela provocou seqüelas profundas. Depois que a vi, esqueci meu nome, endereço, telefone e o que diabos estava fazendo no aeroporto. E como eu também estava temporariamente surdo, não escutei os gritos da minha mulher me chamando. Sim, meu Fiat 147 de leitores, eu estava ali, aparentemente, para ir buscar a patroa.
Aos invés disso, como uma mariposa capturada pela magia ofuscante de uma lâmpada elétrica de mil watts, eu estava seguindo aquela ilha de pernas longas, junto com os outros pássaros, abelhas, andorinhas e tiranossauros. Se alguém, uma pessoa que não reconheci na hora, não tivesse me dado uma rasteira e uma bolsada nas costas, talvez eu tivesse morrido atropelado naquele dia, atrás da supermodelo. É como diz a música, companheiro, só não vai quem já morreu. Como foi a minha primeira manifestação de amnésia e surdez temporárias, eu estava mais surpreso que a própria patroa. No chão, eu tentava evitar mais bolsadas, sem escutar a minha própria voz.
_Voz – eu tentei dizer. E, com mímica, fiz aquela pessoa (que era a minha patroa mas que eu ainda não havia temporariamente reconhecido) entender que eu não estava temporariamente escutando nada. Foi então que também descobri que havia ficado temporariamente mudo. Amnésico, surdo e mudo. Fiz mímica para tudo isso. E como eu não sou nenhum Marcel Marceaux, nem temporariamente, ela entendeu tudo errado. Para começar, ela primeiro achou que estava imitando um buldogue babão. Depois, ela achou que aquilo era uma pouca vergonha descarada e me deu umas dez bolsadas rápidas. Em seguida, ela pensou que eu estava dizendo algo como “dá um tempo aí, baby, que eu estou olhando para uma gata maravilhosa”. Ou “espera aí, deixa eu ver, deixa eu ver, pô”. Ou “larga do meu pé, xulé”. Quando não era nada disso e daquilo. Mais algumas bolsadas e eu comecei a voltar ao normal, pois já escutava uma pequena torcida que se formava em torno do otário que apanhava da mulher no aeroporto.
_ Acerta a orelha dele, madame – disse um engraçadinho.
_Acerta uma no queixo – disse outro.
_Dez pratas na maluca com bolsa – disse um terceiro.
E foi a minha sorte. Depois disso a patroa parou. E foi bem na hora, pois mais uma bolsada e meu óculos teria se partido ao meio. Sem falar no meu supercílio.
(Continua)
domingo, 11 de novembro de 2007
Como arrumar emprego nesses tempos de vacas magras II
A próxima alternativa é o vizinho. É pobre? Pô, cara, mude para um lugar decente. Tenha ao menos vizinhos bem sucedidos. É por isso que você está na pior. Você mora perto de um bando de perdedores e quer fazer sucesso? Meu amigo, na física moderna os iguais se atraem. É o que o Velho Tom sempre disse: Euro atrai Dólar. Dólar atrai Real. Real atrai um monte de especuladores vagabundos... E lá embaixo, bem no finalzinho da cadeia alimentar, eu, você e a torcida do Flamengo ficamos sem nenhum. Emprego atrai emprego. Pobre atrai pobre. Desemprego atrai desemprego. Mala atrai mala. É simples. Se você fizer cara de corintiano na torcida do Palmeiras você sabe o que acontece. E o mesmo vale para qualquer situação na vida. Entendeu? Aliás, extraordinário seria se fosse o contrário.
A última alternativa, e é só em último caso mesmo, é a sogra. Você tentou de tudo. Até aquela colocação no Pet-Shop, como secador de cachorro. Até aquela vaga de dente ambulante, na calçada, perto do ponto de ônibus, debaixo do maior soleil, para fazer propaganda do dentista. Até mesmo aquela outra vaga de apontador de bicho, onde reclamaram que o seu currículo com doutorado e pós-doutorado estava abaixo das exigências mínimas de qualificação. Depois de tudo, tudo, tudo, procure a sogra.
Se com o sogro a regra é despertar compaixão e solidariedade, com a sogra a regra é competência profissional e seriedade. Prepare duas versões do currículo. A resumida com no máximo duas páginas, letra corpo 12, começando com dados pessoais e um parágrafo de no máximo 8 linhas que resuma seus pontos fortes nas mais recentes atividades profissionais. A versão longa terá no mínimo 10 páginas só de títulos de artigos publicados em revistas especializadas no exterior. Não insista. Não ligue. Espere ser chamado. Durante a entrevista, seja profissional, inteligente, objetivo, rápido e muito, mas muito gentil. Sorria. Não mencione a filha dela. Com um pouco de sorte, ela te recomendará para o vizinho. O dela. Que é milionário.
sábado, 10 de novembro de 2007
Como arrumar um emprego nesses tempos de vacas magras
Como sempre, quando a gente não sabe uma coisa, o melhor a fazer é ensinar. E cobrar muito caro por isso.
A primeira coisa a fazer é esquecer o Ed Motta. Aquele papo de não ter nascido para o trabalho não existe. Todo mundo que não é milionário nasceu para o trabalho. Até alguns milionários nasceram para o trabalho, como por exemplo, o... esquece. E esqueça a Internet e os classificados de jornais. Esqueça os concursos públicos. O primeiro lugar para procurar emprego é na empresa daquele seu parente rico. Ligue para ele, até que ele atenda. Até de madrugada. Com parente vale tudo. Até chantagem. Se o milionário for aquele seu primo safado, diga que ainda tem a foto dele pelado, abraçado a uma senhora (ou seria um senhor de peruca?) da mais antiga profissão do mundo. Se o parente for mulher, é melhor ainda. Diga que sabe de tudo sobre os spas, as plásticas e os motoristas. Enfatize a última palavra com piscadelas e sobrancelhas. Cole no milionário. Insista. Não largue do pé. Descubra aonde ele vai quando finge que vai trabalhar e aonde ele vai quando finge que vai descansar. Milionários não se cansam e nem descansam. Milionários curtem. Milionários são o melhor canal do mundo para arrumar um emprego. Será um emprego horroroso, mas você terá um patrão. E milionário.
Ah, você não tem parente milionário? Então vamos para a segunda melhor alternativa para arrumar emprego: o político. Se você tiver cacife, comece com os graúdos. Cole no senador mala que sempre te pediu voto e que você conhece de outros carnavais. Mas é preciso conhecer o mala e também que o mala te conheça. Senão ele negará tudo. Inclusive o emprego. E ainda vai querer te dar lição de moral. Outra coisa: nunca, jamais, em hipótese nenhuma ameace ou insinue a possibilidade de ameaçar o uso da palavra chantagem perto de um político. Esses caras são profissionais. Portanto, não brinque com ferro em casa de ferreiro. Com o político também vale insistir até o limite da indecência, torrando o saco do sujeito à vontade. Não sinta cansaço ou remorso por insistir tanto. Lembre-se que esses sujeitos são os caras que interrompem os shows mais chatos do mundo para fazer os discursos mais idiotas e chatos do mundo. Lembre-se de que eles são sujeitos pagos com o meu, o seu, o dele e o nosso dinheiro para que não deixem o governo roubar o dinheiro da gente. E o que é que eles fazem na primeira oportunidade? Pois é.
Ah!Você não conhece nem sequer um vereador? A terceira alternativa para arrumar um emprego nesses tempos bicudos é o pai da patroa. Se ele for milionário e político, você está feito. Se ele for o dono de um pequeno comércio ou prestador de serviços, você também está feito. Você só vai precisar dizer que é corno. Como? Eu sei que você não é corno. Seria desgraça demais: feio, pobre, desempregado e corno. Eu sei que você não é nada disso. Mas o pai da sua mulher não precisa saber. Deixa ele pensar o que quiser. Te garanto que, por piedade e solidariedade cornística, ele vai te arrumar uma colocação. Agora, se ele for um aposentado pelo INSS, esqueça essa alternativa.
sexta-feira, 9 de novembro de 2007
Encontrei um dos melhores do mundo
Parece que só quando estou muito desempregado que começo a reparar na minha própria aparência. Como agora, por exemplo. Estou desempregado há algum tempo, mas só agora estou me sentindo muito desempregado. Esse sentimento aparece geralmente quando estouro o cheque especial. Ou então é alguma outra coincidência. Estouro o especial, me sinto muito desempregado, olho no espelho, arrebento o cinto, subo na balança. Parece uma seqüência lógica, mas acontece em qualquer ordem.
Vamos aos fatos. Eu fui ao shopping. Coisa besta e trivial, não é? Não, tudo é diferente quando você está desempregado. Para começar, com um emprego, você não precisa de desculpa para ir ao shopping. Você vai porque está a fim e ponto. Mas eu, pô, estou noutra. Tinha que ficar me dizendo que não ia comprar nada, era só para bater perna. “Você também é um ser humano”, eu pensava, quase em voz alta. “É só para distrair um pouco. Vai só curtir o ar condicionado. Não custa nada. Anda. Permita-se. É de graça” – e por aí afora.
Aí cheguei ao shopping. Quando você tem emprego, não encontra ninguém no shopping. Nem mesmo as pessoas com quem você combina de se encontrar. Mas quando você está desempregado, encontra todo mundo. Especialmente as pessoas que você não queria encontrar. O ex-chefe, por exemplo.
_Olá, você por aqui?
_E você? Por aqui? Aliás, por aqui, você?
A ex-mulher, com “cara- de-cadê-a-minha-pensão”.
_Vou mandar te prender...
_Querida, nada de algemas. Comigo é sexo careta, você sabe.
Aquele cara para quem você deve uma grana.
_Vou te quebrar um joelho.
_ Se tu me quebrar, não vai receber. Eu vou vender os meniscos, cara.
Uma antiga ex-namorada, que finge que nunca viu você em toda a vida dela.
_...
_ Lembra de mim? Namoramos muito no sofá da sua casa. Você continua a mesma. Você engasgava, lembra? Tossia. Corria pro banheiro. Um horror.
O síndico. Como você sabe, síndico é um morador do prédio que resolve infernizar a vida dos outros e ainda fazer cara de coitado.
_O senhor está com o condomínio atrasado.
_E o senhor é o atraso do condomínio – retruquei, à la Carlos Lacerda.
Encontrei também o Tavares, um intelectual.
_Como vai?
_É uma pergunta retórica? – retruquei.
_Como assim?
_Assim, como?
Para encurtar, encontrei uns dez conhecidos, todos eles com sacolas nas mãos, inclusive a minha ex-mulher. Eu carrego panfletos de promoções para momentos como esse. Panfletos, folhetos e filipetas são essenciais nessas horas. Se alguém levantar as sobrancelhas, com ar superior, como a me dizer “que diabos você está fazendo aqui sem comprar nada?”, pronto, eu mostro uma promoção. Gesticulo com o panfleto. Ou sacudo a filipeta. Agito o folheto. Com isso tento fazer crer que estou ali fazendo alguma coisa útil e fundamental, como gastar dinheiro, ao invés de estar à toa, inútil e fútil, sem gastar nada, com o crédito zerado e uma dívida de 5 dígitos. Como já dizia o meu amigo e guru Velho Tom, é sempre melhor parecer um pechincheiro do que um desempregado vagabundo, bebum, doente, endividado, piolhento e fedido. Ainda mais no shopping.
Mas no penúltimo encontro com um dos conhecidos, eu estava desprotegido. Não havia nem mesmo uma filipeta por perto para proteger minhas mãos do clássico “abanando”. E tinha que ser justo o Siri, do grupo Os Melhores do Mundo. Gente boa, boa pinta, alegre, simpático e gentil. O Siri foi atencioso e levamos aquele bate-papo imortalizado pela música “Sinal de Trânsito”.
_ Olá, como vai?
_Tudo bem. E você? Eu vou indo...
E foi mais ou menos a mesma coisa. A diferença é que o Siri tem bom humor e alegria de viver de sobra. Deve ser por isso que ele ganha um troco com ela. Algumas pessoas começaram a rir dele, é claro. O Siri é arquiteto. E é comediante. E é dos bons numa dessas duas coisas. E já trabalhou na televisão, na maior delas. Na de mais de 49 polegadas. E quando ele me desejou boa sorte, com um tapinha na barriga, é que eu tive certeza de que o meu cheque especial tinha estourado. Tive certeza absoluta que estava 11 quilos acima do meu peso ideal. Tive plena consciência de que os pneus da minha cintura poderiam ser usados como estepes para dois grandes veículos. E também que eu, ao invés de Careca, definitivamente tinha de ser chamado de Calvo, o Balofo.
_ Até logo, até logo, não esqueça, não esqueça, não esqueça.... – brincou o Siri, se afastando junto com a voz. Ele realmente ficou feliz por me encontrar, embora não se lembrasse do meu nome e nem de onde diabos me conhecia. Bom, eu também não. Então fiquei grato por ele ter sido, no final das contas, um cara que me tratou de igual para igual, embora o terno Armani, o Rolex e outras coisinhas que ele usava evidenciassem algumas pequenas diferenças. De estilo, é lógico. Falando sério, o Siri não me olhou como se eu fosse pedir dinheiro emprestado. Por isso, eu quase toquei nesse assunto. Na última hora, uma coisa me impediu. Orgulho? Amor próprio? Não. Acho que era um segurança da loja, pedindo para eu devolver alguma coisa. Quando virei de volta, o Siri já tinha se mandado.
Procurei um espelho. E no shopping existem espelhos à beça, espalhados por um sem número de pilastras, para que você se veja o tempo inteiro. De acordo com o Velho Tom, os espelhos dos shoppings são “lembranças perenes e brilhantes de que você vai precisar desembolsar uma baba se quiser ficar com uma aparência melhor”.
Dei uma olhada num dos maiores e melhores espelhos do shopping. E comecei a me sentir miserável e infeliz, ou infeliz e miserável, não sei mais a ordem certa. Mas de repente, como que pairando sobre a parva multidão de consumidores, levitando sobre suas sandálias de couro velho, vi uma figura irônica, descabelada, barriguda, evidentemente sem grana e ainda mais aturdida do que eu.
Era o Velho Tom.
E, de repente, me lembrei que no tempo em que eu era só um menino, os garotos do vizinho me invejavam porque lá em casa tinha TV preto e branco. É que na casa deles só tinha rádio.
Entendeu? Entendeu?
quinta-feira, 8 de novembro de 2007
Corredores, abóboras e empadas
Meu amigo Velho Tom é um sábio, embora pareça desmiolado. Os anos de cerveja, uísque e vinho prejudicaram um bocado o ex-fígado dele. Aliás, o ex-fígado só não se mudou porque o Velho Tom pensou bem e bebeu a grana reservada da mudança. Entretanto, os anos de álcool não atingiram a rapidez de raciocínio, a sacada esperta e a cortada certeira. Com as palavras, o meu amigo é um ás de espadas. E truco! Outro dia, falando da humanidade na frente de alguns copos de cerveja gelada, ele decretou:
_Existem três tipos de seres humanos: os corredores, os abóboras e os comedores de empada.
Naturalmente, eu não fiz nenhum comentário. Não se pode apressar o Velho Tom. Se você atalha uma das suas manifestações epistemológicas existencialistas, é capaz dele perder o fio da meada e a coisa ficar solta no ar. Não. Com o Velho Tom você tem que saber o momento certo de encaixar as perguntas para obter respostas. Ou então você encaixa as perguntas e recebe outras perguntas de volta. O que é natural entre marido e mulher, mas superchato quando se trata de um cupincha velho de guerra.
_Pois sim, existem três tipos de seres humanos: corredores, abóboras e empadas – voltou a afirmar.
E eu é que não iria apontar as diferenças conceituais existentes entre os dois vaticínios do meu amigo. Não. Com o Velho Tom, o melhor é esperar o momento certo para inserir comentários pertinentes. Ou então você insere os comentários e o Velho Tom manda você inserir uma ampola você sabe aonde. E depois de uma certa idade, não fica bem escutar uma série de coisas tolas sobre inserções e enxertos sexuais.
_É isso mesmo: corredores, abóboras e empadas – reafirmou o meu amigo.
Certo. Eu pensei comigo. A cerveja está gelada. O lugar é agradável. Tem um vento gostoso. Dá para ver gente bonita. Tem até um parquinho com crianças. É perfeito. E está na sombra.
_O que você acha? – perguntou ele. E como só estávamos nós dois na mesa, deve ter sido para mim.
_O que eu acho do quê? – eu perguntei, fingindo tão intensamente o desinteresse, que chegava a ser desinteresse o que deveras sentia.
_Corredores, abóboras e empadas – ele disse, sério.
_Esses são os seres humanos – falei.
_Muito bem dito – falou.
_Na verdade, quem falou isso foi um amigo meu – eu disse, rindo por dentro.
_É mesmo? Quem?
_É um cara que não tem a memória próxima.
_Quem?
_Você conhece de vista. Ele também gosta muito de cerveja.
_Deve ser gente boa.
_É um corredor que detesta abóboras, mas gostaria mesmo era de ser um comedor de empada.
_Careca, você tirou palavras da minha boca – e me olhou, agradecido.
_Amigos são para essas coisas – retruquei.
_Que coisas? – indagou.
_Que amigos? – inquiri.
_Careca, meu velho amigo, você está um bocado confuso.
Concordei com a cabeça em balanço afirmativo. Às vezes eu me sinto como se fosse apenas uma velha abóbora comedora de empada, vendo corredores a lutar e curtir a vida.
quarta-feira, 7 de novembro de 2007
Raios cósmicos
_Se você fosse um super-herói, você seria qual? – ele me perguntou, com muita seriedade.
E como ele só tem quatro anos, eu não poderia responder qualquer coisa. Não senhor, aquele era um assunto importante e ele com certeza se lembraria da resposta por muitos anos. Tentei ganhar tempo e devolvi a pergunta.
_ E você, seria qual super-herói?
_Super-homem, é claro.
_Mas o Super-Homem é um alienígena. Não é desse planeta. Ele veio do Planeta Kripton, que acabou destruído durante uma guerra, numa chuva de meteoros.
_O Super-Homem veio de outro planeta?
_Sim. Ele veio de outro planeta, que nem existe mais.
_E o Batman?
_O que tem o Batman?
_Também é de outro planeta?
_Não. O Batman é terráqueo. Ele vive em Gotham City, uma cidade que fica nos Estados Unidos, eu acho.
_E o Flash?
_O Flash também é da Terra.
_E o Robin?
_É da Terra, da mesma cidade que o Batman.
_E o Mutano?
_Esse eu não conheço.
_Ele é verde. Vira tigre. Vira elefante. Vira (Tiranossauro) Rex
_Esse eu não sei.
_E tem a Estelar.
_Com esse nome, só pode ser de outro planeta.
_Igual ao Super-Homem?
_Igual.
_E você, pai? Seria qual?
_Mutano.
_Sério?
_Sério – eu disse. Mas percebi que ele ficou triste. Eu havia falado alguma coisa errado.
_Quer trocar comigo? Eu sou o Super-Homem você fica sendo o Mutano.
_Não dá. Agora é tarde demais.
_O que houve?Por quê é tarde demais?
_Por causa de todos os raios cósmicos. O Mutano não pode me salvar. Nem se ele virasse Rex.
_Então eu viro, eu sou outro herói. O Batman. Ele sempre arruma uma maneira de salvar outros, até o Super.
Mas ele fechou os olhos devagar, como se estivesse perdendo as forças, antes de soltar um suspiro que parecia final e deixar a mãozinha cair, dramaticamente. Eu o contemplei durante uns trinta segundos e fui assaltado por todos os meus medos e apreensões em relação ao futuro. Escondi o rosto para que não visse as minhas lágrimas assim que se levantou, com um grande sorriso. Depois ficamos em silêncio. Meu Deus, eu peço todos os dias, me ajude a arrumar, bem depressa, um escudo, uma vacina, qualquer coisa. Mas não adianta nada, eu sei. Afinal, o que podemos fazer contra todos os raios cósmicos?!
terça-feira, 6 de novembro de 2007
Mosquitos me amam III
Índios são legais. Índios são gente boa. Mantenho distância de índios. Quando eu era menino, os índios eram os vilões das histórias do Zorro (The Lonely Ranger) nos quadrinhos da Ebal. E ali, no meio do mato, bêbado feito um gambá, cercado de índios por todos os lados, eu me lembrava que só o Tonto era do bem.
_Alô amigos, como vão vocês? Viva Tupi! Axé Tupã! Valei-me Caramuru! Help me Anhanguera!
_O que você está tomando aí?, me perguntou um deles. Era o único que não estava pintado e também o único de jeans e camiseta. Pelo jeitão e pela idade indefinida, parecia ser o que mandava.
_ Natasha, eu disse.
_Queremos Natasha, disse o índio.
_ Amigos, essa Natasha não vai dar pra todo mundo.
_ Mas vai dar para mim, ele completou e me tomou a garrafinha.
Foram apenas dois goles, mas o bastante para que o chefe Megaré se tornasse, a partir dali, meu amigo de fé, meu irmão camarada. Outro índio descolou um violão e um terceiro uma gaitinha. Só faltava um pandeiro e um repertório. Antes que eu atacasse a imortal “Táxi para uma estação lunar”, Megaré atravessou e começou a cantar “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Depois de umas duas ou três músicas de Raulzito e Alquimista, a tchurma (Zalberto, Amanda, Poliana, Rodrigão, Cabeça, Sandrinha e Briana) chegou com Natasha para todo mundo.
No meio da festa, eu perguntei para o cacique Megaré qual era o melhor remédio natural para picada de mosquito.
_Para picadura de mosquito?
_Qualé ô pajé? Essa é velha. Pergunto com a maior seriedade.
_Bom, para mim só tem um remédio: birita - disse o bugre.
_Mas isso não afasta os insetos - observei.
_ É verdade, mas você não sente mais nenhum. - retrucou.
_Mas índio leva picada de mosquito? - perguntei.
_ Claro, por isso é que a pele é vermelha, otário.
Lembro de ter acordado na minha Transa-A2 e jurado que jamais iria tomar Natasha de novo. Ainda estava jurando quando a Amanda se virou e perguntou se eu poderia pegar água para ela, enquanto ela se vestia. Considerei jurar em falso. Eu me belisquei para ver se não estava sonhando. Mas estava. Acordei sozinho na barraca. A única parte do corpo que havia deixado de fora do saco de dormir foi a minha cabeça. Minha orelha agora parecia com a do Doutor Spock. Era como se eu tivesse levado uma pancada de uma prancha de surf na metade do rosto. Tudo latejava à esquerda. E o teto da barraca, por dentro, estava coberto de pernilongos. Todos gordos e bem alimentados. Com cuidado, fechei o zíper da barraca. Uma hora e meia depois, saí da barraca coberto de sangue, mas com um estranho sorriso no rosto.
Depois, Amanda e Poliana vieram me chamar para ir até a cachoeira. Como eu havia jurado não tocar mais em Natasha, aquela foi uma das últimas vezes que acampei. Sem a vodka, não era a mesma coisa. Mas todas as vezes que os mosquitos me atacam, eu me lembro daquela manhã em que me vinguei de todos eles, um por um e lentamente. O sabor daquela vingança ainda é um bálsamo.
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
Mosquitos me amam II
Eu não sabia, mas só iria encontrá-los bem mais tarde, quase no dia seguinte. Aquela seria uma noite de prova para a minha existência. Eu, só para passar o tempo e a bebedeira, fui catar lenha para a fogueira. Essa atividade consumiu umas boas horas, pois quando eu encontrava lenha eu perdia o caminho de volta para a barraca. E quando eu achava a barraca eu havia perdido a lenha. Mesmo assim, consegui juntar gravetos suficientes para provocar um incêndio de grandes dimensões. E isso talvez tivesse acontecido se não fossem os mosquitos. Na época eles já me amavam profundamente. O efeito anestésico da Natachiúska estava passando e eu começava a sentir as picadas dos insetos. Não se pareciam nem um pouco com as agulhadas que eu sentira no lugar onde antes havia um fígado. As pontadas da vodka russa paraguaia eram fichinha perto das ferroadas dos pernilongos. E além da dor, as picadas eram acompanhadas de uma aflição por coçar e mais ardência do que seria suportável para um ser humano sóbrio. Vodka. Eu precisava de vodka.
Procurei na minha mochila e não encontrei. Procurei dentro da barraca e não encontrei. Procurei no meu bolso de trás e lá estava ela, metade de uma garrafa Natacheska pronta para ser consumida. Um bom gole e as dores já começaram a arrefecer. Logo, logo, eu já havia esquecido que precisava acender a fogueira. A visão do sol se pondo me lembrou da urgência da tarefa, pois eu não havia trazido lanterna. Corri para a mochila em busca dos fósforos. Não encontrei. Olhei dentro da barraca, e nada. Procurei no bolso da frente e lá estavam eles, todos os 60 palitos de fósforos deitadinhos na caixinha deles. Eram lindos, eram a minha única chance de sobrevivência.
Arrumei um pedaço de papel sob uma pirâmide de gravetos e acendi. Em segundos, os gravetos se transformaram em cinzas. E nada de fogueira. 49 fósforos depois eu percebi que deveria utilizar os fósforos com mais bom senso. Mesmo assim, não conseguia acender a fogueira. Os oito fósforos seguintes foram dramaticamente gastos de modo infrutífero. Eu estava pondo tudo a perder. Só me restavam duas tentativas. E uma delas era um fósforo meio defeituoso, com um pescocinho bem fininho. Dava para notar que se eu tivesse que utilizar aquele fosforozinho eu acabaria com o dedo queimado.
Risquei o último dos bons palitos e necas de pitibiribas. Ao invés de fogueira tudo o que eu havia conseguido produzir fora uma brasinha bem pequena, no canto de um graveto. Soprei ali, com cuidado, numa tentativa de avivar uma chama. Nada. A pequena brasa fechou o olho vermelho e se extinguiu para sempre. Eu peguei a garrafinha para mais um gole desesperado. Sem querer, um pouquinho da Natachieska caiu sobre os gravetos. Foi então, oh! meus cupinchas, que uma pequena explosão aconteceu e uma fogueira se acendeu automaticamente para a alegria dos meus olhos. Bum! A Natachenka velha de guerra era o melhor acendedor automático de fogueira em que eu já havia colocado a boca.
Foi bem na hora, pois o sol já havia se deitado para dormir e os pernilongos já estavam prontos para o jantar. Para evitá-los eu tinha que ficar muito próximo das chamas. Conferi a garrafinha. Definitivamente, o que restava ali daria para resistir por duas horas, no máximo. Por outro lado, se eu tomasse tudo de uma vez, talvez eu desmaiasse até o dia seguinte. Mas talvez eu entrasse em estado de coma, e o meio do cerrado não é um bom lugar para entrar em coma.
Eu ainda analisava as possibilidades quando os índios chegaram. (Continua)
sábado, 3 de novembro de 2007
Mosquitos me amam
É verdade. Desde pequeno eu sou perseguido por mosquitos. Se eu estou junto com dez pessoas numa sala fechada, ou aberta, os mosquitos vão morder uma única pessoa: eu. Se todos estiverem de repelente, inclusive eu, serei o único e também o mais picado. Eu atraio mosquitos desde bebê. Com ou sem repelente, os mosquitos me amam. É uma química que existe há tanto tempo que eu já considero natural.
Eu me lembro, por exemplo, de uma das poucas vezes em que topei acampar com um bando de amigos da faculdade. Fomos para o Cristal, uma das quinhentas belíssimas cachoeiras que existem no entorno dessa cidade. Era preciso deixar o carro longe e caminhar um bocado até as proximidades da cachoeira para só então montar as barracas. O sol era tão forte que alguns raios concentrados derreteriam halteres. As árvores retorcidas do cerrado ampliavam a sensação de se estar mergulhando de cabeça no sertão de Guimarães Rosa. Virge!Nonada.
Antes de sair do carro, o Zalberto me perguntou se eu havia trazido repelente.
_Trouxe uns dois quilos, eu respondi, piscando.
_Então tome um banho com ele e dê logo um gole nessa vodka, meu amigo, que os mosquitos daqui atacam na chegada, na meada e na saída.
Segui rigorosamente as instruções, observado pelos meus amigos e amigas. A vodka Natacha, nunca esqueci a marca, havia rasgado a minha garganta e se preparava para fazer o mesmo com o que restava das minhas tripas. Eu podia sentir aquela russa falsificada abrir caminho pelas entranhas. Então tomei mais dois ou três goles. Se eu tivesse um olho interno teria visto meu fígado fazer uma oração desesperada e pedir a extrema unção. Um clarão se acendeu atrás das minhas pupilas. Eu estava me sentindo mais malvado que Jack Nicholson em “O Iluminado”. Se eu encontrasse uma das portas da percepção, faria com ela exatamente o Jack fez com a porta do banheiro naquele filme. Estava pronto para encarar o cerrado. Aleluia!
Caminhei com passos firmes, embalado pelo álcool. Estava tão empolgado que não percebi que estava me distanciando do meus amigos e da minha tchurma. Caramba! E eu nem sabia o caminho para a cachoeira. Segui o meu instinto e uma trilhazinha meio vagabunda que havia por ali. Acabei meio perdido, mas pelo menos estava na beira do rio. Vindo lá da frente, eu podia escutar um barulho de cachoeira. Os outros não tardariam. Tratei de arrumar um bom lugar para armar a barraca. Limpei a área. Deixei o chão lisinho e montei a Transa-A2. Cinco quilos de ferragens e mais dois quilos de lona. Era o que havia de mais moderno, leve e prático para se acampar na época. Em dez minutos estava tudo pronto.
E nada da tchurma. (Continua)
sexta-feira, 2 de novembro de 2007
Um tatu na piscina
Aconteceu há milênios, mas parece que foi ontem. A primeira e única vez que eu comi carne de tatu. Essas coisas a gente não esquece, embora eu tenha esquecido um bocado. Foi na fazenda que o pai do Rodrigão tinha lá pelos fins de Goiás e começos de Minas.
Estávamos terminando uma competição de cerveja. Eram quatro homens e quatro mulheres. Nós havíamos apostado que os perdedores iriam dormir nas barracas. O vencedor iria dormir no único quarto com cama de casal, ar condicionado e TV da casa da fazenda.
E isso não tinha importância nenhuma porque sabíamos que depois de toda aquela cerveja o que menos importava era onde você iria dormir. Seríamos capazes de roncar num tapete debaixo de uma mesa, que foi o que acabou acontecendo comigo. Seríamos capazes de dormir na varanda, ao relento, com milhares de pernilongos sobre o corpo, como aconteceu com o Cabeça. Ou de capotar no chuveiro, com o chuveiro ligado, e acabar com a água da caixa d´água da casa, como aconteceu com o Rodrigão. Ou ainda de ser encontrado abraçado a uma árvore e a uma garrafa de Natu Nobilis, meio comido pelas formigas, como aconteceu com o Velho Tom. As meninas, aquelas mulheres sábias, acordariam devidamente acomodadas nas barracas, todas com um gosto de meia velha na boca.
Mas estou adiantando as coisas.
A competição de cerveja ainda não havia terminado. O objetivo era ver quem tomava mais cervejas sem ir ao banheiro. Pingo na calça, filete misterioso no chão, resultava em eliminação imediata com humilhação pública. O Velho Tom tinha uma bexiga maior que uma barrica e foi considerado “hors concours”. O Rodrigão tinha acabado de ser desclassificado por barbeiragem. Sem querer, havia derramado cerveja na calça, o que impedia a verificação de algum “vazamento” involuntário.
Eu e o Cabeça éramos os únicos no páreo, porque as mulheres iam ao banheiro a cada dois copinhos de cerveja. O Cabeça dava nítidos sinais de que perderia a batalha nos próximos minutos. Eu estava concentrado, com o foco correto e goles determinados. Ou seja, bebia feito um porco e dava nós mentais na minha uretra. O número de garrafas estava empatado. Eram onze horas da manhã. Nós dois tínhamos bebido seis cervejas cada um, sendo que a minha só faltava um copo para encerrar. A cerveja do Cabeça estava pela metade e ele começava a lacrimejar.
_Cabeça, entregue os pontos, você está mudando de cor, disse o Velho Tom. Ou você gosta de roxo?
_Velho Tom, vá chupar uma tampinha, ele respondeu, com gentileza.
_Meninas, o Tobi achou um Tatu, gritou o Rodrigão.
_ Quem é Tobi?
_É o cachorro.
_Quem é o Tatu?
_Tatu é o anão que grita “um avião, patrão, um avião”.
_É um tatu de verdade, animal.
_O animal Tatu ou eu?
_Você o quê, animal?
_O Animal também vem?
_Quem é esse cara?
_O Tobi achou um tatu de verdade na piscina.
_Piscina?Eu não sabia que tinha piscina.
_Ainda não é uma piscina. Por enquanto é só um buraco.
_Acharam um tatu no buraco.
_E como faz para o tatu sair do buraco?
_Enfia o dedo no...
_Não faz isso, mermão, que o tatu vira bicho.
O tatu acabou sendo frito e servido, com molho de pimenta. Ainda não era crime inafiançável. Mas depois disso, só 20 anos depois fui ver tatu vivo novamente. E ainda por cima num mini-zoológico que funciona na periferia de Salvador, na Bahia. E não sei se foi por causa da fome, ou da raridade da comida, mas ainda guardo na lembrança o sabor delicioso daquela carne.
Ah! E quem ganhou a aposta foi o Cabeça. Eu fui desclassificado assim que entrei no buraco da piscina para capturar o tatu. Peguei o bicho na unha.
quinta-feira, 1 de novembro de 2007
Pela frente ele é legal
Nós estávamos sempre provocando o Bú.
_Entubador de brachola!
_Engolidor de kibe!
_Morde-fronha!
_Bola-gato!
_Bambi!
E até o Digão, que aos 15 anos já era maior que o armário da cozinha mas nunca sacaneava ninguém, também ensaiava uma valsa com o Bú:
_Macho, macho, macho, man...
_Pô, Digão! Essa música não, pô!
E o Bú procurava revidar.
_Dobra, redobra e enfia no tóba.
_Joga a mãe pra ver se quica.
_Por quê todo viado é surdo?
_Vai chupar uma ampola!
Mas não adiantava, ele estava sempre em nítida desvantagem. E não sabia metade dos palavrões e pegadinhas do Jô. Aquele baixinho agressivo era um grande colecionador de adjetivos que não poderiam ser utilizados na missa. Aliás, eram enfeites de substantivos que não poderiam nem passar perto da sombra da porta de uma Igreja. Não posso nem reproduzir um milésimo desse vasto conhecimento de baixo nível.
Pois o Jô inovou. Num certo dia em que encarnávamos no Bú, sem que ele tivesse fôlego para retrucar, o Jô passou a defendê-lo.
_Pára com isso, pessoal. O Bú é legal.
_Qualé Jô, virou amiguinho de baitôla?, disse o Sumbrái.
_Vão fazer uma festinha, as mocinhas?, falou o Digão.
_As meninas vão fazer um troca-troca de absorvente?
_Pára com isso. O Bú é muito legal. Ele é gente finíssima e vocês não estão sendo bacanas. O Bú, e eu também digo isso pela frente, o Bú é um cara que nem eu, que nem você. É um cara simples, como todos nós. O Bú também é do bem.
Olhamos para o Bú. Ele havia baixado a guarda e aberto uma primeira tentativa de sorriso. Eram semanas e semanas de ataques constantes, de acusações baixíssimas de baitolagens e enrustições homofóbicas. E de repente, ali estava um aceno de paz e vindo de quem ele menos esperava. Por isso mesmo, ele estava desconfiado.
_Bú, eu queria te fazer um pedido.
E aquilo parecia o início de um pedido de desculpas oficial, feito pelo maior sacaneta que já havia aparecido sobre a face da Terra. Eu estava me beliscando.
_Pela frente, Bú, eu peço desculpas. Em meu nome e em nome desses babacas.
Bú não podia acreditar. Era genuíno. Um pedido de desculpas verídico e inconfundível feito pelo Jô, que não pedia desculpas nem quando ouvia uma vaca tossir.
_Ih, Jô, deixa disso, cara, sei que era só brincadeira de vocês...
_Pela frente, Bú, pela frente você é legal. Mas por trás, não. Por trás, Bú, você é todo arrombado...
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