segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012
Adeus ao meu tio louco
Être un Homme comme vous [Anglais]
Meu tio louco morreu. E não morreu de loucura, num acesso de fúria, como um dia eu temi. Morreu doente, fraco, depois de engasgar com a alimentação novamente. Estava internado na capital, na unidade de terapia intensiva. Há um mês ou menos, aconteceu a mesma coisa. Mas dessa vez não resistiu, apesar de socorrido a tempo. Nós todos fomos às pressas até a cidadezinha velá-lo e enterrá-lo. Esse meu tio foi enterrado ao lado da minha avó materna, que o adotou ainda menino. Desde pequeno tinha fama de doidinho, porque o pai também tinha sido um pouco pirado. Quando surtou pela primeira vez, as pessoas acharam natural. Muitos diziam que era uma sina, que era só uma questão de tempo, era uma coisa que estava no sangue.
Era meu padrinho. Sempre me tratou muito bem, com uma atenção talvez um pouco exagerada. Caprichava no papel de padrinho, com presentes brilhantes e caros demais para suas posses. Era amistoso e brincalhão. Mas eu, por mais que me esforçasse, nunca consegui vencer o medo irracional que sentia ao ficar perto dele. Meus primos da cidadezinha contavam muitas histórias a seu respeito, exagerando a sua loucura e agressividade. Um dia percebeu que eu o temia e depois disso parou de me tratar com salamaleques. Na verdade, ficou indiferente a mim. Adorava meu irmão mais velho, que sempre o tratou com respeito e amizade genuína. Comigo era apenas educado. Durante parte da minha infância tive medo de ficar louco por causa desse meu tio lelé.
Um dia fiquei sabendo que não era um tio de sangue, que havia sido adotado pela minha avó. O pai havia abandonado a família, depois de um acesso de loucura. A mãe de sangue mal dava conta de cuidar das outras crianças.
Esse meu tio trabalhava de garçom e se casou com uma mulher bonita, teve um casal de filhos. A mulher resolveu sair de casa com as crianças depois de um dos seus ataques de fúria. A mulher refez a vida. Casou-se novamente e criou os filhos em outra cidade. Os filhos foram ao enterro. Eram crianças quando os vi pela última vez, mesmo assim era impossível não reconhecê-los. O filho era a cara do meu tio. E a filha era a cópia da mãe.
Dizem que meu tio teve seu primeiro ataque de loucura depois de comer um sapo. Ele adorava pescar e caçar rãs. Parece que foi desafiado por um companheiro de pescaria e acabou comendo um sapo. Uma vez vi um dos primos provocá-lo com essa história. Ele negou tudo e disse que era invenção de um filho da puta. Lembro de tremer só de ouví-lo xingar o amigo de pescaria. Acho que foi nesse dia que percebeu que eu tinha medo dele. Quando tinha seus surtos, xingava quem estivesse pela frente e quatro homens fortes não eram capazes de segurá-lo.
Era muito pobre, esse meu tio. Andava de bicicleta. Uma vez o vi subindo uma ladeira íngreme da cidadezinha, debaixo de chuva forte. Estava feliz, enlameado, os olhos azuis brilhando.
No seu velório, o rosto parecia encerado. As mãos estavam cruzadas sobre o peito numa aparente tranquilidade, mas a barriga estava seca, com se estivesse prendendo a respiração. O percurso até a cova foi feito rapidamente, é um cemitério pequeno. Foi enterrado no mesmo jazigo dos meus avós. Vi os ossos da minha avó num caixotinho de madeira, sem tampa. Cobriram tudo com um plástico azul. O coveiro fechou o jazigo quebrando lascas dos tijolos, inventando encaixes.
Digo adeus ao meu tio louco, meu padrinho, a quem privei do meu amor e até do meu respeito, por medo de também ficar louco. Medo esse que nunca passou.
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