Wilson e Bruno chegaram às dez da manhã de hoje para consertar a bóia da caixa dágua do boiler. Enquanto eu estava viajando com a minha mulher e as crianças, alguma coisa da bóia quebrou e minha casa ficou três dias jogando água pelo ladrão. Felizmente, Rose, a secretária-universitária-babá-bombeira-hidráulica daqui de casa viu a água despencando, fechou o registro e avisou a minha cunhada. Ela avisou a seguradora, Wilson e Bruno foram até a minha casa e descobriram que o problema era na bóia. Ótimo.
A Rose trabalhou o dia inteiro, limpando e secando os banheiros dos quartos das crianças. A água acumulada no sótão escorreu pelos buracos das lâmpadas dos banheiros. Segundo a Rose, os banheiros ficaram parecidos com um mangue sem caranguejos.
Tudo isso aconteceu na segunda-feira, então na quarta-feira, quando eu cheguei de viagem com as crianças e a minha mulher, tudo já deveria estar corrigido e funcionando, certo? Errado, é claro. Num país onde todos os anos as enchentes nas cidades matam dezenas e atrapalham a vida de milhares, é lógico que a solução dos problemas só ocorre a conta-gotas. O que aconteceu foi que o Wilson e o Bruno não apareceram na terça-feira, como tinham prometido para a Rose.
Na terça-feira, eu ainda estava em Gramado, no Rio Grande do Sul, com a família, vivendo o sonho do Natal Luz e do reveillon. Foi muito bacana o Natal Luz, mas se alguém cantar jingle bells do meu lado sou capaz de pular no pescoço do infeliz. E talvez essa minha irritação provocada pela repetição excessiva de músicas natalinas, chocolate e vinho, mas não necessariamente nessa ordem, tenha me deixado na expectativa de que os milagres acontecem, os seguros funcionam no Brasil, e que tudo estaria resolvido antes que eu pusesse os pés em casa.
Sim, sou um idiota otimista. Wilson e Bruno não apareceram, para desgosto da Rose, que adiou passagem de ônibus e o início das suas férias para esperar pelos donzelos furões. Minha cunhada ficou indignada e ligou para a seguradora, para saber porque os bombeiros hidráulicos não tinham aparecido. Depois de esperar dez minutos ao som do último megahit de Justin Bieber(eles repetiram três vezes), a atendente disse:
_Eles não foram por causa da divergência de informações.
_Nossa! Isso é grave! E qual foi a divergência? - disse a minha cunhada.
_Vou verificar. Por favor, aguarde na linha - disse a atendente.
E colocou Justin Bieber novamente. Minha cunhada pediu desculpas para nós, e nós a desculpamos, é claro, mas ninguém merece o JB. Aliás, essa irmã da minha mulher foi superlegal e atenciosa por ter ligado para o seguro e tudo o mais, mas ninguém merece o seguro Liberty também, como vocês vão ver logo mais adiante, sigam.
Bom, estamos agora na quarta-feira pela manhã, nós estamos visitando mais uma fantástica fábrica de chocolates caseiros em Gramado e eu, só por curiosidade, pergunto à minha cunhada, pelo telefone, se o Wilson e o Bruno apareceram lá em casa. Necas. A negativa faz com que eu reflita sobre os problemas que afligem os brasileiros todos os anos e a comparação com o povo sofrido e encharcado diminui um pouco a vontade que eu tenho de torcer o pescoço de Wilson e Bruno, os bombeiros hidráulicos furões. Mas só um pouco.
Na quarta-feira à noite, estamos em casa, joy to the world, e verificamos que a Rose fez um bom trabalho. Tudo está limpinho, mas as crianças não poderão dormir em casa, porque são alérgicas e as duas estão espirrando feito loucas. Eu também, mas finjo que não é nada. Passei uma noite infernal, os olhos lacrimejando, o nariz escorrendo, uma erisipela seguida de coceira na garganta e tosse louca. Às quatro da manhã achei que não sobreviveria, mas olhei pela janela e vi uma estrela cadente e fiz o pedido secreto de que tudo se resolvesse nesta quinta-feira.
Hoje, às dez da manhã, em ponto, Wilson e Bruno chegaram para concluir o serviço que deveriam ter feito na segunda-feira. Mas eu entendo isso. Juro. E quando eu penso no povo sofrido e enlameado, que todos os anos paga os impostos que vão para o mensalão dos políticos simpáticos e safados que afanam a grana que deveria servir para resolver problemas tão banais quanto enchentes anuais e doenças da pobreza e da falta de higiene, digo para mim mesmo que não devo ficar puto com Wilson e Bruno, deixa prá lá, o que importa é o hoje, aqui e agora.
_Bom dia, Wilson. Bom dia, Bruno - eu disse.
_Você já comprou a bóia? - disse Wilson, com a simpatia de um duende molestador de unicórnios.
_Oh, sim, foi a primeira coisa que fiz na manhã de hoje - eu disse. E era a mais pura verdade, porque a loja de materiais de construção fica bem perto da padaria e eu me lembrei que uma bóia seria muito necessária, especialmente quando se sabe que todo o problema tinha acontecido por causa de uma bóia.
_Hum. Será necessário remover o telhado para realizar o serviço. Você já está ciente disso? - disse Wilson, tão amável quanto uma rena estupradora de bambis.
_Não tem problema, é só tirar umas duas ou três telhas e colocar de volta - eu disse, enquanto conduzia os bombeiros hidráulicos para a varanda, para que tivessem acesso ao telhado.
_Terei que consultar a seguradora para verificar o valor da taxa extra. Tudo bem? - disse Wilson.
Nesse momento, uma luz amarela se acendeu na minha mente, logo atrás dos olhos. É a mesma luz que fica vermelha quando vejo o saldo da minha conta bancária. Mas mesmo assim eu disse para o Wilson ir em frente, que o celular era dele, e que de celular para celular, a ligação era gratuita e, se não fosse, a conta era dele. Bruno, enquanto isso, já fingia tentar levantar uma telha ou outra, demonstrando extraordinária elasticidade facial com caretas incríveis.
_Ei, Wilson, as telhas estão com massa, não consigo tirar essa massa. Não vai dar - disse Bruno, após mais uma série de caretas.
Wilson ainda falava com a seguradora, de modo que não ouviu uma única palavra. Ao invés disso, falou para mim que a taxa pelo serviço seria de setenta reais.
_Uuuh! - eu disse.
_Veja com a seguradora se isso inclui a massa - gritou Bruno.
_Massa? Que massa? Setenta só inclui a substituição de bóias - berrou Wilson.
_Não, vou ter que quebrar a massa, tirar as telhas e verificar a bóia. Talvez até seja preciso tirar os caibros - gritou Bruno.
_Vou verificar com a seguradora. Tudo bem? - disse Wilson.
_Verifique. Verifique - eu disse, observando a pantomina de Bruno sobre o telhado. O sujeito era bom de mímica.
_A seguradora disse que a taxa, com a massa, é de cem reais - disse Wilson.
_Isso inclui os caibros? - berrou Bruno.
_Caibros? Não, vou ter que ligar para a seguradora. Tudo bem? - disse Wilson.
_Pode ligar para seguradora quantas vezes você quiser, mas vá embora AGORA - eu disse. E você, Marcel Marceau, desça daí com cuidado agora mesmo! Saiam os dois da minha casa neste instante! Saiam! Vão embora, já! Eu não quero que façam nada! Não toquem em coisa alguma. Vão. Sumam. Feliz Natal! Feliz Ano Novo! Sejam felizes longe daqui. Nunca mais voltem. Vou cancelar esse seguro HOJE mesmo! Sumam!
Depois do almoço, com a ajuda do jardineiro, troquei a bóia. Só foi preciso mover duas telhas. Mais tarde fiquei pensando no povo brasileiro molhado e desabrigado, que constrói onde não deve, confia em gente que não presta para fazer o que é preciso, e que sempre paga o pato pela divergência de informações. Ninguém merece.
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