quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Contenção de despesas nível 5 alerta vermelho
Terence Trent D'Arby - Wishing Well
É verdade. Às vezes eu tenho a impressão de que a crise passou por aqui em casa antes de pular o Equador, quebrar aqueles bancos nos EUA e depois rumar para a Europa, quebrando países. É coisa séria. A crise lá fora está uma loucura embora não se veja ninguém arrancando os cabelos. Por aqui dizem que o país está bombando, que nunca fomos tão felizes e cheios da nota, mas não é o que diz o meu saldo bancário. Somos bem felizes, é verdade, mas ninguém aqui em casa fica dando risada à tôa. Também é bem verdade que eu não tenho mais um contracheque, no máximo aparecem uns cheques do contra uma hora aqui outra acolá.
Estamos nos virando, é claro. Eu me viro o tempo todo, sou um paranóico convicto. Para você ter uma idéia, uma vez eu estava indo para uma festa encontrar uns amigos e tive a impressão de que um carro me seguia. Eu olhei pelo retrovisor, balancei a cabeça, não, não poderia ser verdade, quem iria me seguir?, mas olhei de novo e lá estava o carro, os faróis brilhando, o da esquerda meio cambeta. Mudei de pista e o farol cambeta também mudou. Voltei para a outra pista, o farol cambeta também voltou. Diminuí a marcha e o cara também. Acelerei, o sujeito colou no meu para-choques(os carros tinham isso naquele tempo). Liguei o limpador do vidro traseiro. O carro de trás lavou os vidros da frente.
Putz, eu pensei, além de me seguir o cara também está me imitando. E aí reparei que atrás do farol cambeta tinha um outro carro que também fazia tudo o que eu e o meu imitador fazíamos.
Putz, estou perdido, pensei. Tenho que me livrar desses caras, vai ver, são sequestradores, ou então isso é uma nova modalidade de assalto. Os caras seguem você até provocar um ataque cardíaco ou você bater de tanto olhar para o retrovisor, o que acontecer primeiro. Aí eles te cercam e...zás, entrei bruscamente à direita para despistar os dois seguidores. Mas não adiantou. Os caras conseguiram fazer a curva, o cambeta cantou os pneus e acho até que levantou duas rodas. Mas ali estavam os caras, firmes no meu retrovisor.
Putz, e agora, e agora, e agora? Então eu entrei por uma via mais calma, quase sem trânsito. Pensei em dar um cavalo de pau e enfrentar os seguidores, mas não sei dar cavalo de pau. Pensei em pular do carro em movimento, rolando pelo asfalto. Mas ia ser um preju danado, eu ainda estava numa das 60 prestações do consórcio. Enquanto eu pensava em ágio e na falta de seguro, a rua acabou. Putz. Não tinha jeito. Eu tinha que me entregar. Abri a porta do carro e saí com as mãos para cima.
_Não atirem, não atirem, eu me rendo - eu disse.
_Pô, Careca, não sabe o endereço da festa? - disse um amigo meu que tinha um dodginho histórico, com uns faróis cambetas. Atrás dele, num fusca, outros amigos também reclamavam.
Depois disso, nunca mais liderei uma caravana até uma festa. Eu até que tentei, mas sempre tinha alguém para lembrar dessa história. E foi justamente enquanto eu me lembrava dessa história que a moça do caixa disse que o cartão não estava funcionando.
_Como? - eu disse.
_O cartão não está sendo reconhecido, senhor - ela disse. Moça, simpática, bem educada, e me olhava como se eu fosse um estelionatário amador. E velho.
_Hum, não está sendo reconhecido, hum - eu disse. Eu repito as coisas quando acho que não fazem sentido, é mania minha.
_É, senhor. É preciso inserir o cartão novamente - ela disse. E estendeu a mão.
Eu tenho uma reação alérgica quando estendem a mão para pegar o meu cartão de banco. Não sei porque, mas toda vez eu recuo o cartão e o protejo com o corpo. É uma reação comum, instintiva. Já vi gente protegendo o cartão com a mão, como se fosse uma carta de poker. Já vi gente trocar o cartão e mostrar o cartão certo. E também já vi gente que teve o cartão apreendido até o gerente chegar. E o gerente sempre demora. Por isso, tenho o maior medo de ficar sem cartão.
_Pode deixar que eu mesmo tento - eu disse. E olhei para a fila do caixa. Era imensa. Em dois minutos, parece que trinta pessoas entraram na fila do caixa. E agora, todas elas me odiavam, é claro. Eu sei, porque eu também já sucumbi ao ódio da fila do caixa. Foi só uma vez, mas foi marcante. Sei que daquela vez eu prometi que não iria mais odiar nem ser odiado na fila do caixa, mas esqueci de combinar com o meu cartão. Ele não era reconhecido.
_Putz, isso nunca aconteceu antes - eu disse.
_É claro, senhor - disse a moça do caixa. E eu pude notar que ela não acreditava em mim. E também olhei para a fila do caixa e peguei uns três ou quatro caras revirando os olhos, como se também não acreditassem naquela cascata. Embora fosse verdade, diga-se e ressalte-se de passagem. Nunca tinha acontecido aquilo de não ser reconhecido.
_Pô, mas eu sou eu mesmo, e este é o meu cartão, juro, como é que a máquina não reconhece? - eu disse. E passei a digital no visor da máquina, olhei de perto, sei lá, hoje em dia tem maquininha que reconhece até fundo de olho, mas nada deu certo.
A moça do caixa então estendeu a mão novamente, mas eu sorri e disse que tinha um plano b.
_Eu tenho um plano b - eu disse.
_Como? - disse a moça do caixa.
_Vou telefonar para a minha mulher e ela vem pagar a conta - eu disse.
A moça do caixa deu um sorrisinho irônico, daqueles de canto da boca, e na certa deve ter pensado com seus botões que eu era mais um marmanjo vagabundo e cervejeito sustentado pela mulher. No que ela tinha um pouco de razão, embora a situação tivesse pelo menos uma atenuante. Eu não estava comprando nenhuma cerveja. Atrás dela, outros fregueses balançavam a cabeça. Um velhinha disfarçou uma careta de nojo. Parecia a velhinha do Frajola e PiuPiu, com o cabelo em coque. Lá no final da fila alguém soltou uma gargalhada. Só podia ser comigo, é claro.
E assim, ó minha kombi de leitores, eu liguei para a minha mulher e pedi socorro. Até ela chegar, enfrentei os olhares de reprovação de uma penca de seres humanos que tinham cartão sem problemas. Menos da velhinha. O dela também não foi reconhecido.
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