_Filho mais velho tem que dar o exemplo - dizia a minha mãe.
Eu não sou o mais velho, então eu ficava tranquilo. Mesmo assim, uma vez perguntei ao meu pai o motivo.
_O exemplo vem de cima, filho - ele me explicou.
Eu entendi. Era a mesma lógica do homem-aranha. A grandes poderes correspondem grandes responsabilidades. E os meus irmãos mais velhos eram bastante poderosos para mim. O que, na minha interpretação enviesada, me conferia pequena ou nenhuma responsabilidade, o que viesse primeiro. Em geral, era nenhuma.
Eu era baixo, magro, franzino, óculos de fundo de garrafa, pés chatos e asmático, o que também contribuía para o estereótipo de bom menino. Eu não devia ser um menino mau, mas estava sempre metido em encrenca, brigava o tempo todo e vivia achando que a culpa era minha. Rapaz, como eu me sentia culpado quando era menino! Os motivos podiam ser bem banais, mas a culpa era gigantesca. Se sobrava fígado no meu prato, eu não estava sendo bom porque os pobres não tinham o que comer. Desperdícios eram pecados graves e mortais. Sobras eram motivos para sermões apocalípticos. Descuidos com uniformes e calçados geravam horas de reclamações.
Se eu ficasse doente, as primeiras dez perguntas eram uma mera rotina para verificar o que é que eu estava fazendo de errado. Se eu falasse coisas como "droga" ou "desgraça" estaria fatalmente atraindo coisas negativas para mim, por livre e espontânea vontade. Na minha cabeça, eu estava sempre à beira da blasfêmia, andava no fio da navalha para ser condenado de vez, ao fogo dos infernos. O contrário não funcionaria automaticamente, caso eu falasse coisas como "felicidade" e "quero ser milionário". Ser bacana, gentil, educado e bom não garantiam passaporte carimbado para o céu se as ações não fossem, do mais profundo do coração, genuinamente bacanas, gentis e boas. E meu coração de menino duvidava cruelmente de si mesmo e da mais genuína das bondades.
Às vezes, minha mãe ficava com raiva e dizia que eu era uma peste. Meu irmão vivia dizendo que eu era uma peste. E eu mesmo achava que era uma peste. Depois minha mãe vinha e me dizia que não ligasse, que eu era um bom menino. Meu irmão dizia que eu era uma peste mesmo. Mas era só ciúmes, eu sabia.
Nesse tempo, meu pai me dizia que existiam palavras boas e palavras más. As palavras más eram más. As boas palavras eram boas. Muito tempo depois é que eu percebi que existem também umas palavras cinzas, descoloridas, que ficam nas frestas e cantos das coisas que dizemos e das coisas que não conseguimos dizer.
Ainda hoje eu torço para encontrar e dizer as boas palavras. As que iluminam e engrandecem e que nos inspiram. As que dão um aperto no coração, mas que ainda assim precisam ser ditas.
_Boas palavras! - eu desejo para mim mesmo.
_Boas palavras! - eu desejo para todos vocês.
3 comentários:
boas palavras Careca!
quando eu era criança me sentia tão culpada que um dia sumiu dinheiro da bolsa de uma guria e eu me tranquei no banheiro pra ver se tinha sido eu. ble.
Leila, e você se pôs de castigo? Rá.:)
Marcos, você era culpado. Boas palavras.
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