quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
O Careca e o Espírito de Natal
Alabama Shakes - Hang Loose
Desde que me mudei estou com um relógio novo para medição do consumo de água do lado de fora da casa. O relógio está acoplado a um tubo dentro de um quadrado de concreto. Deve pesar uns cem quilos. Está coberto de hera. Em todas as casas da minha rua há um relógio desses. São vinte candidatos a lixo hidráulico numa única descida. Mas não há o que fazer. Temos que aguardar a companhia de água avisar que está na hora de fazer a ligação do novo sistema. Acredita-se que esse aviso será dado com uma semana de antecedência, para que os moradores possam se preparar para as ligações. Terei que contratar uma ou duas pessoas para cavar uma vala por onde passarão os tubos ligando a velha malha de água com a nova caixa. Também terei que ter canos e válvulas adequadas.
O benefício não é muito grande.No futuro, quando o novo relógio estiver funcionando, não será preciso mais abrir a porta para que um funcionário da companhia de água entre e faça a medição do consumo. Caso eu também queira colocar o relógio da eletricidade fora de casa, terei que desembolsar alguns milhares de patacas. Casas novas no bairro já são construídas com as inovações. Facilita um bocado porque nem sempre há alguém em casa.
Hoje os caras das companhias de água e luz vieram medir e imprimir, na hora, as contas. Na minha casa, o relógio fica ao lado da piscina. Pela primeira vez desde que nos mudamos o consumo ficou dentro do razoável, sinal de que conseguimos localizar todos os vazamentos de água e também que estamos sendo mais racionais quanto ao consumo. O mesmo vale para a eletricidade, andei substituindo muita fiação velha.
Meu vizinho já viajou para as festas. Antes de sair, na terça-feira, ele tocou a minha campainha e pelo interfone perguntou se eu teria um minuto para conversar com ele.
_Claro! - eu disse.
Mas fui até o portão com o pé atrás, tentando recapitular mentalmente todas as coisas que eu fiz nas últimas semanas que poderiam tê-lo chateado ou simplesmente tê-lo deixado emputecido comigo. Barulho, pensei. Estou ligando a serra elétrica todas as vezes em que ele está treinando a clarineta. Se eu tocasse clarineta como ele eu ficaria puto com a falta de respeito do vizinho, eu pensei. Ou então, ele finalmente ficou com raiva da lixadeira elétrica e do aspirador de pó, só pode ser. Não, foi o lixo, putz, deixei cair o saco de lixo na entrada da garagem dele, mas pensei que tinha limpado tudo, o que será?, o que será?, eu pensei, no pequeno trajeto entre o escritório e o portão de casa.
Aperto a mão do vizinho com formalidade, ainda pensando em como posso ter deixado de ser civilizado e cortês com aquele velhinho, que uma vez subiu no telhado da própria casa para pegar uma bola das crianças. Nem precisava, a bola estava furada. Trocamos os cumprimentos de praxe, falamos sobre o tempo e então ele estendeu um pacote de presente para mim, desejando um Feliz Natal para minha família e também um próspero ano novo. Fiquei sem palavras por alguns segundos. Depois agradeci, ainda bravo comigo mesmo por sempre esperar dos outros o que espero de mim, uma indiferença neutra com um sorriso bem-educado. O vizinho então se retirou apressado e eu fui mostrar o presente para a minha mulher: uma garrafa de vinho chileno bem-afamado.
_Putz, esqueci o presente do vizinho na minha mãe - disse a minha mulher.
Putz, eu pensei, eu jamais sequer havia considerado a possibilidade de comprar um presente para o vizinho. Eu nem sequer havia pensado num cartão de natal. Pensando bem, talvez eu tivesse considerado apenas um aceno ao longe, com a boca fazendo o movimento de Feliz Natal, mas sem som.
Aí fiquei pensando, pô, será que só eu é que sou assim? Náaá. Claro que não, eu pensei. E aí as crianças vieram ver o que estávamos conversando e ficaram sabendo do presente do vizinho. Então cada uma correu para um canto e depois voltou com papéis dobrados.
_Pai, nós fizemos cartões de natal para o vizinho, podemos entregar?
_Vocês fizeram cartões de natal? Agora?
_Estão prontos faz tempo, pai. Ele foi muito legal daquela vez com a bola furada.
_E a gente também gosta de ouvir ele tocar clarineta.
_Aliás, pai, será que você poderia parar de ligar o aspirador toda vez que ele começa a estudar música?
_E poderia parar de jogar lixo na entrada da garagem dele? Eu vi pela janela, pai.
Minha mulher me olhava horrorizada. Saí de fininho. Fui me refugiar dentro de uma partida de xadrez contra o computador. Fui derrotado umas três vezes. Na última, tive quase certeza de que a máquina ria de mim. Enquanto jogava fiquei pensando que o meu Espírito de Natal ainda não está funcionando muito bem. Talvez ele melhore nos próximos dias. Mas talvez piore.
Estou falando isso porque hoje os caras das contas de água e luz deixaram um aviso de que estiveram no vizinho e não encontraram ninguém. Já recebi um aviso desses. Tínhamos viajado e a Rose(a babá-cozinheira-lavadeira-faxineira-assistente-social-matrícula-trancada-daqui-de-casa)deixou de vir alguns dias seguidos porque ficou doente. Na pior das hipóteses, a água é cortada. Mas o serviço, em geral, é rapidamente restabelecido, embora aqui em casa tenha demorado uns dois ou três dias. Preciso me lembrar de dizer essas coisas para o vizinho. Ou talvez eu use a chave que ele me emprestou para receber os caras da água e da luz para abrir a caixa de correio e esconder os avisos.
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