terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A lógica do Capeta

Um dos garçons de um dos botecos que eu frequentava, já lá se vão muitos anos, tinha o apelido de Capeta. Era irmão ou cunhado dos donos do boteco, não me lembro mais. O Capeta tinha sido estudante de física na universidade. Rezava a lenda que havia sido um dos primeiros colocados de um vestibular de antigamente, mas depois que entrou no curso, a preguiça, a loucura, o desbunde e o consumo de substâncias proibidas haviam transformado um garoto prodígio num estudante velho que não conseguia se formar. Até hoje não sei se conseguiu concluir o curso ou não.

Nós nos conhecemos logo quando entrei na universidade num curso de engenharia, numa matéria introdutória do curso de física na qual o Capeta ganhava uma bolsa como monitor. Era considerado um ótimo monitor pelos alunos, porque não enchia o saco e deixava todo mundo fazer o que bem quisesse enquanto os professores pretendiam explicar alguma coisa. Lembro de um experimento idiota em que deveríamos produzir um gráfico sobre a variação da velocidade de uma bolinha de aço numa canaleta. Uma das pessoas do grupo decidiu que a inclinação da canaleta não era muito radical e acabamos por fazer uma pista com uma queda livre num copo dágua. Alguém de um outro grupo disse que não poderíamos fazer aquilo. O Capeta assistiu a discussão e falou que tudo bem, não havia problema algum.

Nós continuamos a fazer modificações na canaleta, para desespero de alguns estudantes do outro grupo, muitos deles futuros médicos e engenheiros. No final, nosso experimento consistia em tentar acertar um copo de plástico presa ao final da canaleta, depois de se atirar a bolinha de aço do outro lado da sala. Alguém havia sido escalado para anotar a velocidade com que isso era feito numa folha quadriculada. É lógico que a bolinha raramente corria sobre a canaleta e fazíamos uma gritaria louca enquanto ela corria pela sala. Só paramos quando o professor de física, irritadíssimo com a bagunça que encontrou na sala, ameaçou a mim e a outros dois energúmenos de jubilamento imediato. Eu ainda tentei argumentar com o professor e joguei o Capeta na fogueira, dizendo que ele havia autorizado a zorra. O professor se virou para o futuro garçom para ver se ele confirmava a história. Ele deu de ombros e mostrou a folha quadriculada.

_Tirando o que está errado, está tudo certo, professor. Eles fizeram o gráfico - ele disse.

Alguém realmente havia anotado as velocidades e produzido um gráfico, conforme o esperado. Depois eu iria trancar o curso de engenharia e fazer novo vestibular, mas essa é outra história. O que importa e ficou foi aquela frase. Ela viria a marcar os meus anos de universidade porque era efetivamente o que acontecia comigo. Tirando o que estava errado, estava tudo certo, desde que eu conseguisse fazer o que era esperado. Acho que isso acabou se entranhando um pouco na minha maneira de ver as coisas. Desde que algumas das minhas expectativas mínimas estivessem sendo atendidas, estava tudo certo, "no problema".

Mas de alguns anos para cá, alguma coisa aconteceu. Talvez minhas expectativas tenham se expandido. Talvez meu senso de responsabilidade tenha aumentado. Ou talvez eu tenha percebido que há algum problema com a lógica do Capeta e que não basta obter ou apresentar o resultado esperado. É preciso muito mais do que isso, eu sei.

Seja como for, acho que o vi hoje na rua, quando fui levar o meu filho para cortar o cabelo. Lá estava o Capeta, encostado numa parede da rua comercial, ou pelo menos era um cara bem parecido com ele. Fomos nos aproximando e eu já estava com a frase na ponta da língua, o cumprimento especial que sempre trocamos durante todos os anos de universidade e os anos em que frequentei botecos. Mas a uma distância de dez passos, o sujeito se desencostou e saiu apressadamente.

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