domingo, 30 de setembro de 2012
Certificado de campeão
Jimi Hendrix - Red House intro - England, Isle of Wight, 31 August 1970
Antes que vocês me perguntem porque estou com um esparadrapo na mão esquerda, vou logo contando. Foi um acidente na sexta-feira, no finalzinho da tarde, quando só faltava um pequeno desbaste num dos furos que eu estava fazendo na oficina. Meu plano é construir um carrinho de apoio para a churrasqueira sem usar parafusos, o que exige encaixes precisos. Guardei todo o equipamento, tirei as luvas e já ia colocar a miniretífica no armário quando o bicho carpinteiro me beliscou e resolvi fazer só mais um ajustezinho num furo. Errei a mão e acertei a esquerda. Quero dizer, em um segundo fiz um buraco da profundidade de um dedo na minha mão esquerda. Corri para lavar, etc, e coloquei um esparadrapo poroso para tapar a ferida. À noite, quando minha mulher chegou do trabalho e viu o machucado, ela me convenceu a ir para o pronto-socorro.
_Tudo bem, você vive reclamando que a gente não sai mais à noite - eu disse.
Havia uma longa fila no hospital privado, mas fui atendido rapidamente. Havia, é claro, uma folha A4 dizendo que não estavam mais aceitando o plano de saúde da GEAP, mas tinha a sorte de estar com outro plano de saúde. Em dez minutos, o machucado foi lavado, esterilizado e costurado. Só faltava a anti-tetânica. A médica disse que o pronto-socorro estava sem a injeção. Pelo que entendi, ela afirmou que a anti-tetânica só estava disponível na rede pública de saúde e me entregou um encaminhamento para uma profilaxia antitétano. Era sexta-feira, nove e quinze da noite. Ela explicou que os postos de saúde não abrem nos finais de semana, mas os hospitais públicos, como o Hospital Regional do Asa norte dispõem do medicamento. Eu deveria tomar a injeção naquela noite ou no sábado, sem falta. Achei que era um exagero prolongar o programa de índio para a minha mulher e voltamos para casa.
No dia seguinte, às nove e meia da manhã, eu e meu pai chegamos ao hospital da asa norte à procura da vacina. O HRAN já foi considerado um ótimo hospital público, tendo sido o Hospital Materno Infantil da capital brasileira durante muitos anos. Agora, sinto a maior vergonha em dizer que o hospital está um lixo. O piso do pronto-socorro parecia ter sido arranhado por um iguanodonte furioso. Um pano de chão encardido estava estendido ao lado do guichê de atendimento. As paredes estavam descascadas. A tinta esmaecida e desbotada. Os encostos de vários bancos não estavam lá. Ferrugem, sujeira, mesas de fórmica lascada. Material velho e de péssima aparência. Luminárias sujas, iluminação precária. Parecia uma rodoviária do interior mais humilde do país. Mas a primeira coisa que notei no hospital foram os dois guardas armados. Seguranças de uma empresa terceirizada. Não eram PMs. Eram seguranças de empresa terceirizada. Duas dezenas de pessoas esperavam no pronto-socorro. Fui até o guichê para mostrar o encaminhamento da outra médica. Respondi as perguntas que o sujeito insistia em me fazer, apesar de estar com a minha identidade nas mãos. Reparei que havia uma grande quantidade de folhas A4 grudadas na parede informando que era crime, de acordo com o artigo tal, insultar servidor público no exercício da função. O cara do guichê ficou muito surpreso quando eu disse o meu endereço e CEP. Expliquei a ele que os postos de saúde estavam fechados e que eu precisava tomar a vacina ainda no sábado.
_Você vai ter que ir até a Cirurgia Geral. É só ir até lá e aguardar.
_Não tem uma guia de atendimento, uma senha, nada?
_A informação está no sistema - ele disse.
Eu e meu pai demos meia volta no hospital e encontramos a Cirurgia Geral. Quatro faxineiras de empresa terceirizada conversavam na entrada, em meio a baldes de água suja, panos e aventais amarelados. O piso da Cirurgia Geral estava em pior estado do que o do pronto-socorro. Os bancos de espera também. Os encostos eram raros. Um guarda da empresa terceirizada estava do lado de dentro do balcão de atendimento. Achei que era um atendente. Disse o meu nome. Ele disse o meu nome errado.
_Acho melhor você voltar lá e refazer a ficha, porque seu nome está escrito errado no computador. Tem médico que empomba e não atende. Vai por mim, volta lá.
_Não se preocupe, meu nome é tão esquisito que não vai ter confusão nenhuma. E é só uma injeçãozinha.
_Volta lá, vai por mim.
_Vou me arriscar. É um enfermeiro que chama?
_Não, é o médico. É só esperar.
Fui preparado para esperar. Levei o meu caderno de desenhos. Meu pai havia levado o manual do automóvel para descobrir como alguns itens do painel se relacionam com smartphones e celulares. Meu pai se amarra em tecnologia. Sentamos ao lado de uma senhora negra e humilde. Logo, logo nos cansamos dos passatempos e começamos a conversar. A mulher estava com furúnculos, com muita dor. Atrás de nós, duas grávidas estavam esperando a realização dos partos. Uma delas estava lá desde às cinco da manhã. Outra tinha passado por vários hospitais em busca de atendimento e parado ali. Um sujeito cabeludo e de jeans ficava mancando de um lado para outro. Outras pessoas pareciam simplesmente exaustas. Cada um tinha seu próprio drama estampado no rosto. Fiquei feliz por não estar com a mão furada e precisando de um médico na manhã de sábado.
As crianças nas barrigas das duas grávidas estavam passando da hora. As mulheres suavam. Era possível ver as formas de pés, braços e mãos apertando suas barrigas, de dentro pra fora. A mãe de uma das grávidas achou que já havia esperado tempo demais e foi conversar com o guarda. Ela estava ali há várias horas. Sua enteada estava passando mal, queria saber se o parto seria realizado ainda naquela manhã. O guarda, com a rispidez dos guardas, disse que não sabia e que ela deveria falar com um médico.
_Mas falar com quem? Aqui não tem médico, nem enfermeiro, nem ninguém. Só tem o senhor, seu guarda.
_Eu só trabalho aqui algumas vezes. Eu sou segurança - e apontou para cima. Ali também, em folhas A4 e letras garrafais, o artigo tal dizia que era crime ofender servidor no exercício da função pública.
_Não tem outro jeito, senhora, é só esperar - ele disse. E a mulher voltou para a enteada.
Eu voltei para o meu desenho. Também já estava um pouco cansado dos dramas alheios. Tudo o que eu esperava era apenas uma pequena injeção. Às dez e meia um médico jovem sai apressado da sala de cirurgia. Ele se aproximou da mulher que havia conversado com o guarda e disse que havia uma outra emergência. Um parto havia se complicado e a paciente estava sob risco de vida. Por causa disso, não haveria atendimento de outras pessoas. O serviço estava suspenso. Então virou as costas e desapareceu.
Todos ficamos atônitos. A mulher grávida que esperava desde as cinco horas soluçava. Perguntei ao guarda se isso significava que todos deveriam procurar outros hospitais, ou que só as mulheres grávidas deveriam procurar outros hospitais.
_O quê? Eu não sei de nada.
_Mas o médico não conversou com o senhor?
_Não, ele não me disse nada. Eu sou só o guarda.
_Meu senhor, estou aqui há mais de uma hora e ninguém foi chamado. O médico disse que o serviço estava suspenso. Eles vão atender mais alguém? Eu só preciso de uma antitetânica, mas tem mulheres grávidas aqui. Elas não serão atendidas?
_Não precisa ficar nervoso.
_Moço, eu não estou nervoso. Estou perguntado devagar e calmamente se alguém aqui será atendido.
_Não sei dizer a você. Todo mundo fica nervoso comigo, mas eu sou o guarda. Só trabalho aqui de vez em quando. E só fico do lado de dentro do balcão porque canso de ficar parado em pé ali, no canto. Parece que não estou fazendo nada. Aqui eu pelo menos vejo os nomes na tela do computador. E nesses plantões, nunca aparece atendente, parece que só tem um médico de plantão, hoje. E é de queimados. Então, eu não sei. Ou você espera ou vai embora.
_Como é o seu nome?
_Ari.
_E Ari, aqui não tem chefe, não tem ninguém responsável?
_Tem o chefe de equipe. O ramal é 4277. Mas o melhor é ir até lá na entrada novamente e falar com ele. Por telefone é quase impossível falar com alguém.
Mesmo assim tentei. Tocou até cair. Duas vezes. O sujeito cabeludo havia se aproximado. Estava com um corte num dos pés e também havia sido encaminhado para um hospital público.
_Fui em três hospitais na asa sul e não consegui. Também quero saber se serei atendido.
Eu, meu pai e o cabeludo voltamos para a entrada do pronto-socorro. Passamos pelas duas mulheres grávidas, o desespero estampado nos rostos delas e dos familiares. Para onde seguiriam? Eu não saberia. No guichê, conversei com o mesmo sujeito que havia se espantado com o meu endereço. Expliquei que havia mulheres grávidas na cirurgia geral e que nem elas sabiam se seriam atendidas. Ele se levantou e disse que iria conversar pessoalmente com o chefe de equipe. Sumiu dentro do hospital.
Ficamos esperando por dez minutos. Conversando com o cabeludo, ele disse que a mulher estava procurando uma clínica de imunização aberta que tivesse a anti-tetânica. Ela estava com um smartphone e dali a pouco teria uma resposta. Desistimos de esperar o sujeito do balcão e voltamos para a Cirurgia Geral. No caminho, vimos a mulher do cabeludo e duas crianças num carro popular.
Na Cirurgia Geral, o guarda Ari continuava posando de atendente, já que não havia mais ninguém e ele não gostava de parecer que não estava fazendo nada. Tentei novamente falar com o chefe de equipe por telefone. De repente, uma porta se abre e uma médica aparece, por alguns segundos.
_Tem alguém queimado aí? - ela disse.
Ninguém se mexeu.
_Tem alguém queimado aí? - ela disse.
Cri. Cri. Ela bateu a porta e não reapareceu.
_Ari, será que essa médica não poderia nos atender? - eu disse.
_Não, de jeito nenhum. Ela só atende queimados.
_Você tem um isqueiro? - eu disse. Mas o Ari não entendeu.
Nesse meio tempo, a mulher de Ciro, o cabeludo, veio dizer que havia descoberto uma clínica no final da Asa Norte que tinha a vacina.
_Chama Imunocenter. Fica em frente ao Boulevard Shopping. E a vacina só custa trinta pratas - disse o cabeludo.
Mancando um pouco, ele correu para lá. Eu e meu pai resolvemos ir lá também.
_Ari, cansei de esperar. Bom plantão pra você - eu disse.
Encontramos a clínica depois de alguns minutos rodando no final da Asa Norte. Era uma clínica pequena. Mas o piso de mármore travertino brilhava de limpeza. Os móveis estavam perfeitos e todos os panos visíveis estavam muito limpos. O ambiente era ventilado e agradável. As funcionárias estavam impecáveis e bem-humoradas. Ciro, o cabeludo, tinha acabado de tomar a sua vacina e me desejou boa sorte. Tive que esperar uma menina de um ano chamada Lídia tomar sua vacina. Ela chorou um pouquinho, mas depois abriu um sorriso bonito e corajoso. A antitetânica foi totalmente indolor.
A moça da clínica, só de brincadeira, me ofereceu um certificado de campeão por ter tomado a vacina sem chorar. Eu, só de brincadeira, aceitei. No elevador, enquanto descíamos, mostrei o meu Certificado de Campeão para a menina Lídia, que não entendeu nada do que eu estava falando. Mas percebi que os pais ficaram pensando se não deveriam ter pedido um certificado para a filha. Vai ficar legal na minha oficina.
P.S.: O HRAN está uma tristeza. A calçada de fora do hospital está feia. A urbanização em volta do hospital é descuidada. As cercas não recebe pintura há anos. Tudo parece velho e mal conservado. O cenário é decadente. Tenho a impressão de que tudo, absolutamente tudo, piorou.
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