terça-feira, 10 de abril de 2012

Eles podem pintar o seu meio-fio

São apenas oito e trinta da manhã, mas eles começaram bem antes disso. Os dois caras de boné e camiseta resolveram iniciar o dia na minha rua, eu os vi quando levei as crianças para a escola. Com a operação tartaruga da PM, a greve dos professores, a escrotidão na segurança pública, o esbulho da saúde, as picaretagenss licitações , um bilhão torrado na porra de um estádio de futebol e o cinismo de sempre dos governantes, a cidade está indo para o buraco rapidinho. Então esses sujeitinhos de boné chegaram na minha porta. Tocaram a campainha sem piedade.

_O que você quer? - eu disse. Eu sou uma simpatia no interfone.

_É o meio-fio, doutor. Estamos aqui para pintar o seu meio-fio - ele disse.

_Não, obrigado, ele está com uma cor legal - eu disse.

_Nós vamos pintar de branco, doutor. Já pintamos a rua quase toda - ele disse.

_Pode pular a minha casa - eu disse.

_Mas vai ficar feio, doutor. A rua toda pintada e só a sua casa sem o meio-feio branco - ele disse.

Um sinal? Eu, na minha louca paranóia, pensei logo num sinal. A marginália se organizando, pintando o meio-fio dos que devem ser deixados de lado, deixando de pintar as casas que devem ser atacadas. Ou o contrário. O importante é se confundir com a manada, gritou o meu instinto de sobrevivência.

_E aí, doutor? Vai querer que pinte ou não vai? - disse um dos caras de boné pelo interfone.

_Espera um instante - eu disse. E corri para olhar pela janela. A rua inteira com os meio-fios pintados de branco. Faltava só a minha casa e a do meu vizinho. Manada, eu pensei.

_Pode pintar - eu falei.

_Tem de cinco, de oito e de dez - ele disse.

_Como é?

_Tem de cinco...

_Faz a de cinco - eu disse.

Dois minutos depois os caras tocaram novamente no interfone.

_Está prontinho, doutor.

Saí e estendi os cinco mangos para os caras de boné. Sei que eles avaliaram todos os meus movimentos. Que contaram as voltas que dei na chave, que me observaram cuidadosamente. Eu também observei os dois com cuidado, tirei fotos de quando conversaram comigo no videofone. Prestei atenção quando foram até o vizinho e tocaram a campainha. Ficaram por lá uns quinze minutos, depois subiram a rua lentamente. Um deles carregava uma lata de tinta, o outro levava os pincéis enrolados em jornais. No final da tarde caiu uma chuva bem leve. Mesmo assim ela foi suficiente para lavar todo o meio-fio da minha rua.

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