Quase tudo na vida é metáfora. Como já disse o Fernando Pessoa, a gente finge tão completamente que aquilo acaba sendo aquilo mesmo. E uma das melhores metáforas da vida é aquela história do amigo músico. Todo mundo já teve ou tem um amigo que foi ou é músico, coitado, que numa época da vida acreditou em Papai Noel e também que seria possível viver de música.
Não estou sendo irônico, nem nada.
Isso aconteceu com um monte de amigas e amigos meus. Eles embarcaram nessa canoa e somente uns três ou quatro navegaram até o porto seguro dos mares da melodia. A maioria deu com os burros n’água. Outros desistiram antes da lama chegar até a canela, o que poupou alguns vexames bancários, mas deixou a vida dessas pessoas mais sem-graça. Ao menos para mim, que gostava de vê-los tocar e de cutucar mocinhas bonitas na platéia dizendo que era chapa dos músicos. Tudo muda. Sucesso não tem fórmula e as coisas que ficam ninguém sabe, até que ficam. De vez em quando alguns deles ainda tocam, chamam a gente para as apresentações. Mas eles estão ficando cada vez mais velhos e cheios de manias. E esquecidos também.
_Toca aquela! Toca aquela! – eu sempre pedia para os meus amigos músicos, ao final de uma apresentação. E quase sempre era uma música que eu gostava e que não tinha nada a ver com o repertório da moçada. Eles me olhavam com espanto, mas eu não me achava inconveniente.
Outra parte dos meus amigos que eram músicos tentou conciliar duas atividades até onde desse, a vida careta com a vida de artista da música. Esses sofreram mais tempo. Pois chega uma hora em que é preciso optar, ou se deslancha uma ou a outra atravanca. E o sofrimento decorre de se achar que se perdeu tempo precioso.
A verdade é que estamos sempre sob o dilema do diletantismo. Todo mundo quer fazer só o que gosta. Mas até mesmo o que se gosta às vezes torra “El saquito”, o que exige um esforço considerável para auto-superação.
Estou falando tudo isso porque não sei tocar nada, nem campainha. E isso já me gerou imensa frustração, até tentei aprender a tocar violão, uma época. Depois eu quis aprender a tocar bateria. Depois bongô, pandeiro e triângulo. Hoje sou metido a desenhista. Carrego um moleskine sketchbook para todo lugar. E em todo lugar, faço uma pausa para um rabisco qualquer. Puro exibicionismo, é verdade. Mas todo mundo tem orgulho do que faz.
É uma mania assumida, que durante anos sufoquei com rabiscos em guardanapos, nas costas de filipetas e na parte não impressa dos folhetos. Sempre rabisquei. Aí, quando me lembrava, carregava aquelas folhas xumbregas para casa, que num instante eram confundidas com o lixo que efetivamente eram e jogadas fora. Durante anos fiz ilustrações apressadas que acabaram numa lixeira de um prédio de apartamentos ou no cesto de papéis do carro. Tenho certeza de que fiz grandes desenhos, mas os meus principais críticos foram os roedores ou insetos cascudos.
Um dia eu decidi que iria guardar os desenhos. E para não desperdiçar os rabiscos e valorizar o que eu fizesse, o suporte teria que ser caro. Por isso escolhi os moleskines, que são adoráveis, mas custam uma fortuna. Apesar de usar caneta gel preta, nunca rascunho os desenhos. Eles têm que nascer limpos, prontos para o moleskine. Algum dia farei uma seleção, publico num outro blog, sei lá. Estão ali. Não jogo fora. Tenho orgulho deles. Tenho controle completo e absoluto sobre o que desenho nos cadernos.
_Por que você não desenha aquilo? – pergunta uma pessoa, quando eu mostro o meu moleskine.
_Aquilo eu não quero desenhar – eu explico. E digo também que sou um exibicionista pernóstico, que mostra os desenhos e desdenha a crítica.
_Ah, você não sabe, né? - desdenha a pessoa.
_Não, eu não quero desenhar aquilo - eu repito a mesma frase em outra ordem.
_Tenho um primo que sabe desenhar aquilo muito bem - volta a desdenhar a pessoa, com a mesma lógica.
_Então, pede pra ele - eu digo, sem pensar.
_Além de bom desenhista, meu primo também é muito educado - encerra a pessoa.
Eu desisti de tentar vencer batalhas verbais depois que um idiota quebrou o meu nariz só porque eu estava namorando a mesma garota que ele. De qualquer modo, só agora, depois de muitos moleskines preenchidos, é que eu entendo o olhar sobranceiro que o tocador de violão sempre me dava quando eu pedia uma música qualquer, fora do repertório.
_Posso desenhar aqui, paiê? – pergunta a minha filha de quatro anos, cada vez mais linda.
E para ela também digo não. Mas estendo uma folha em branco, mais pesada, que uso como mata-borrão, para que ela também desenhe com uma caneta gel. Os desenhos dela e também os do meu filho, guardo num envelope que os moleskines têm, na contracapa. No caderninho, todos os desenhos são meus.
4 comentários:
careca, os seus desenhos são bons? porque se não são, não há quem não disfarce. olha, não quero falar mal, apenas nunca vi.
Franka, são razoáveis. Mas quando são ruins alguém sempre fala. Elogios são raros. Em geral, é toca aquela!
Careca, o cara mais talentoso para desenho que já conheci entrou numa aula de desenho e nunca mais na vida teve vontade de rabiscar qualquer coisa...
Mwho, tem uns "professores" que realmente sabem como dinamitar um talento.
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