sexta-feira, 13 de março de 2009

A minha modesta opinião sobre aquela excomunhão

_Santuário! Santuário!

Foi lendo “O Corcunda de Notre Dame”, de Victor Hugo, que pela primeira vez ouvi na minha mente o grito dessa expressão. Fiquei vivamente impressionado. Aos perseguidos que conseguissem chegar à porta da Igreja de Notre Dame, toda a proteção era concedida e assegurada.

O mais impressionante não era o fato da Igreja sempre abrir as portas aos que buscassem ali a proteção. O que mais me impressionava era o respeito geral à regra do Santuário. Eu era um menino crédulo e cheio de imaginação. Para mim, tudo era possível, inclusive voar com uma turbina de foguete amarrada às costas.

Santuário era uma espécie de campo de força imaginário. Quem invocasse Santuário não poderia ser agredido. Ninguém se atrevia a quebrar a regra. A fúria da Igreja seria terrível. Não era somente o fogo dos infernos que se temia, mas também o fabuloso poder temporal da Igreja. A extraordinária capacidade de mover reis, exércitos e armas que as catedrais já possuíram.

Esse poder, essa capacidade ainda está entranhada nas nossas cidades e em nossos corações e mentes. Ainda hoje, nos locais de ajuntamentos de gente, nos cenários que montamos para nossas novelas, ficam as praças das Igrejas, as prefeituras e câmaras, um quartel/cadeia, um boteco, uma quitanda e uma pensão.

Fez parte da minha formação, é parte da minha cultura, ter o calendário tomado pelos números da quaresma, pelas efemérides do Evangelho e pelas abstinências e comedimentos ditados pelas regras da Igreja. Coisa boa e elementar, que sempre me deu a sensação de pertencimento, de comunidade, de grupo e família.

O calendário da Igreja sempre teve lugar de destaque nas paredes da cozinha, na casa da minha avó, das minhas tias, da minha mãe. Folhinha sempre teve santo, santa, ainda que lá embaixo tivesse escrito que foi o armazém de fulano que pagou a impressão, tenha piedade, compre lá. E na minha cabeça, o meu calendário ainda é o da infância, igual ao que havia na casa da minha avó, do lado do quadro grande, que tinha um Cristo com o coração em chamas, no peito.

Aí acontece a história da menina. A excomunhão da mãe da menina, dos médicos. E todo mundo começa a dar palpite. O governo deu palpite. O presidente, os ministros e os políticos deram palpite. Os médicos deram palpite. Os advogados deram palpite. Os economistas palpitaram. Outros religiosos de outras religiões deram palpite. Até jogador de futebol deu palpite. E eu acho ótimo poder dar palpite. As regras do direito, do civil e do canônico,foram perfiladas e um monte de especialistas e leigos começaram a discutir os preceitos e teses do que é superior e inferior, do que é sagrado e inalienável, do direito à vida e do direito à saúde. Mas faltou alguma coisa.

Acho que faltou ali um grito de santuário. Também faltou santo. Faltou aparecer alguém ou alguma coisa que inspirasse a sensação de que para aquela menina, haveria esperança, amparo e proteção. Mas não vi nada disso. Aliás, cada vez se vê menos santuário. Tudo parece cada vez mais desesperado, desamparado e desprotegido.

Tudo o que vi foram homens muito certos de que estão certos querendo fazer valer suas opiniões de certitudes.

E talvez até o erro esteja em mim, que estou querendo ver coisas boas demais e isso não seja mais possível. Talvez seja só eu, que ainda quero acreditar em anjos que voam com foguetes amarrados nas costas. Talvez seja um problema meu, que ainda olho para uma foto do Papa João Paulo II e num instante consigo pensar na resistência ao nazismo, na Polônia, no perdão ao homem que tentou matá-lo a tiros, no beijo numa criança na África ou no chão de um aeroporto. Da multidão cantando "a benção João de Deus". E era mesmo, eu sentia. JP II foi o Papa que disse durezas, que reafirmou os princípios e manteve as rédeas curtas, mas que também era valente em sua fé, era um santuário vivo.

Desse outro novo Papa, confesso que não sei de quase nada. É o líder da Igreja. E essa Igreja tem um bispo que se impacienta rapidamente com perguntas e brada a censura da excomunhão à mãe de uma vítima da violência. A mesma Igreja que apenas, se tanto, puxa as orelhas dos pedófilos de batina, dos loucos que negam o holocausto.

João de Deus, quero acreditar, teria dado um jeito de, primeiro, ficar ao lado das vítimas, mãe e filha. Talvez fosse esse o Santuário que eu quisera ter visto. Um Santuário que sempre fizesse questão de manter as portas abertas. Que significasse, antes de tudo, refúgio, ainda que provisório.

Mas acho que isso não existe mais. E também não se escrevem mais romances como Victor Hugo. Santuário acabou. Talvez nunca tenha existido de verdade.

Ou talvez eu esteja enganado.

2 comentários:

Anônimo disse...

Fiquei comovida com seu texto. Obrigada por traduzir um mal estar que eu também estava sentindo com essas notícias.
Minha mãe e minha vó eram muito religiosas e rezavam sempre pra gente. Rezavam até para desconhecidos. Elas fizeram promessas quase impossíveis de cumprir para benefícios dos filhos e amigos doentes ou com problemas mais graves. Cumpriram todas. E eu, na minha arrogância juvenil, achava um horror quando as via fazendo algum sacrifício desses. As duas morreram no mesmo ano e fiquei com uma sensação de desamparo total. Eu, que me julgava auto suficiente em assuntos espirituais, percebi que elas eram meu santuário. E que nem eu mesma entendia minha fé torta, terceirizada. Hoje sou eu que rezo por meus filhos e amigos, de um jeito meio desajeitado. Você e sua família estão entre eles.
Abraço carinhoso
Tina Salimon

Shirley de Queiroz disse...

Tenho lido seu blog há alguns dias. E tenho gostado...
Quando você falou sobre João Paulo II, eu senti uma saudade dele, como se fosse um conhecido. Quase como a saudade que sinto da minha vó.
Esse outro Papa me parece um tanto duro - contrastando com a maciez de JP.
Quando ele assumiu o posto, eu tinha um programa de entrevistas na TV daqui. Te juro: liguei para todas as paróquias da cidade e nenhum, NENHUM, padre quis vir comentar o assunto. Simplesmente porque eles não gostaram da escolha. Ninguém gostou.
Nesse caso da excomunhão, acho que foi tudo muito estranho. Iriam deixar a menina morrer? Omissão também é pecado, não é?
Se eu fosse fazer uma entrevista com um padre hoje, perguntaria: Vão excomungar o estuprador também? Só pra ele tem perdão??
E eu sou católica também....

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