sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Ponto



The Cactus Channel - Wooden Boy

Fui comprar açúcar no supermercado. Nosso consumo de açúcar é imenso. Algum dia ainda vão fazer uma auditoria e descobrir que fomos nós, eu, minha mulher e meus filhos, que fizemos os usineiros desistirem de produzir álcool combustível. É tão grande o nosso consumo que uma vez fiquei de tocaia na despensa para verificar se alguém estava comendo açúcar na calada da noite. Não descobri nada porque acabei dormindo, mas reforcei fortes suspeitas. Foi uma campanha memorável.

_Onde você estava? - disse a minha mulher.

_Dormindo na despensa - eu disse.

_Fala sério. São quatro horas da manhã e você está deitando só agora? Ficou conversando na internet, não foi?

_Não, benhê. Caí no sono dentro da despensa. Estava vigiando o açúcar.

_Isso não está acontecendo. Isso é um pesadelo.

_Pesadelo vai ser quando eu descobrir quem está comendo açúcar escondido - eu disse.

Desconfio principalmente da ex-babá-universitária-cozinheira-faxineira-governanta-daqui-de-casa, a Rose. É que ela não pode comer açúcar e todo mundo sabe que o proibido é mais gostoso. Como a Rose não dorme em casa, logicamente não poderia ter atacado a despensa à noite e por isso mesmo não foi pega em flagrante delito açucarado. Aos cinquenta e poucos, com peso crescente e a ameaça de diabetes, Rose está naquela fase de interdições preventivas que se tornarão permanentes. Eu entendo a Rose. É muita pressão. Desde que adotamos a folha-de-ponto-do-lar-do-Careca aqui em casa o consumo de açúcar aumentou consideravelmente. Sim, a lei nos obriga a manter uma folha de ponto e acho que uma outra lei nos obriga a seguir a lei, embora muita gente deixe isso para lá. Mas aqui em casa não. Seguimos à risca todas as disposições, até as transitórias. Logo, se a lei exige uma folha de ponto, nós mantemos uma folha de ponto, que a Rose assina todos os dias na hora em que entra e na hora em que sai.

No início, confesso, o maior problema com a folha-de-ponto foi a própria folha. Alguém sempre usava a danada para anotar recados nos verso ou ficar rabiscando garatujas e bichinhos enquanto estava ao telefone. Eu mesmo desenhei uns cubos, esferas e cones, só pra praticar o sombreado. Outro problema era com a própria folha. Ela quase sempre sumia, coisa mais difícil de achar no meio dos desenhos das crianças. E elas desenham muito. Até o dia em que encontrei um imã de geladeira sensacional para pendurar folhas de ponto. Isso ajudou a diminuir as perdas de folha e também a rabisqueira, já que o telefone fixo fica longe da geladeira e do imã.

O único problema é que o imã não ajudou a diminuir o stress da Rose. Ela deve ter os seus motivos, embora eu desconfie que isso tenha alguma coisa a ver com o horário de entrada no trabalho. É que os ônibus estão sempre quebrando, há sempre um problema na pista, os carros de passeio são uma bosta, acidentes acontecem, é uma bagunça o transporte coletivo. Sei que não é culpa dela, mas também não é minha, e a lei manda estabelecer o controle de ponto. Então eu controlo. Todos os dias fico de olho no relógio para mandá-la embora pra casa.

_Rose, são cinco horas, está na hora de você ir embora. Eu já acionei a sirene de ir embora duas vezes - eu digo.

_Mas hoje eu cheguei às dez e pouco, Seu Careca - ela diz.

_É, mas você não parou no horário de almoço. Lei é lei, Rose. Se passar das cinco, tenho que colocar no banco de horas, fazer uma equação biquadrada para o cálculo das férias. Sem falar da hora extra. E tem que assinar a folha antes de ir embora - eu digo.

_Eu assino amanhã - ela diz.

_Não, senhora. Ponto é ponto, não é parágrafo - eu digo.

E quando a Rose finalmente vai embora, a folha assinada, eu vou conferir o vidro de açúcar. Eu tinha feito uma marca discreta com o lápis que fica ao lado do telefone. Vou checar e o açúcar está na mesma marca. Ou então fizeram uma nova marca e apagaram a antiga.







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