quinta-feira, 13 de maio de 2010

Um baú na minha cabeça

Tenho algumas lembranças dessa pessoa, que considero minha amiga, embora ela mesma talvez não me considere como amigo. Não nos vemos há mais de vinte anos. Não restou uma única foto dos tempos felizes em que saíamos quase todos os dias. Mas seu sorriso amplo, de quase todos os dentes à mostra, sua gargalhada estrondosa, são inesquecíveis. Íamos sempre ao cinema, nos tempos da Cultura Inglesa. Lembro de assistir um festival de David Lean ao seu lado. Lembro de uma opinião sobre Lawrence da Arabia. "O melhor filme de todos os tempos". E depois, quando assistimos Tess: "o melhor filme de todos os tempos, depois de Lawrence da Arábia".

De piadas bobas. Olha o carro, ploft. Que carro?, ploft. O quê?, ploft.

Lembro do seu sorriso aberto, enorme. Lembro de escutar discos de Fagner, Ednardo, Yes, Caetano, Gil, Mutantes, Beto Guedes, Rita Lee, Djavan, Milton Nascimento, todos de vinil, ao seu lado. Usávamos fones de ouvido grandes na discoteca. Havia uma discoteca onde nós sempre íamos escutar os discos novos, que ninguém tinha dinheiro para comprar. Passávamos horas ali dentro. Os toca-discos ficavam numas cabines envidraçadas. Toda hora um chamava o outro para escutar um pedaço de música legal. E o mais interessante não era o que cada um ouvia, mas a cumplicidade de dividir uma novidade junto com o outro.

Ela gostava de andar de bicicleta. Eu não gostava tanto. Nunca fui muito atlético. Mas eu a acompanhava. Ela amava a biblioteca que havia em sua casa. Eu também adorava ler os livros que havia por lá. E muitas tardes nós passamos na sala, lendo, um ao lado do outro. Isso também ampliava a cumplicidade. Nós falávamos dos livros que transbordavam das estantes. Eu falava dos livros que um dia eu escreveria. Eu tinha um monte de textos datilografados. Mas um bocado de coisas ruins aconteceram rapidamente, numa sequência tão lancinante quanto uma cirurgia mal-sucedida. E ela precisou ir embora. Jamais trocamos correspondências. Não possuo nem mesmo um cartão, um bilhete, com a sua letra. Dela não guardei uma mecha do cabelo, que era liso e claro. Às vezes parecia branco de tão amarelo.

Passado tanto tempo, até hoje não consigo falar sobre o que aconteceu. Para fugir desse assunto, coloquei essa amiga e tudo o que me lembra dela num baú na minha cabeça. Um baú de pirata. Igual àqueles que existem em aquários, as bolhas de ar levantando a tampa de vez em quando. E o mais estranho é que todas as vezes em que me sinto disciplinado, pronto para escrever o que tenho que escrever, uma bolha qualquer faz com que esse baú se abra para me assustar um pouco. E então eu hesito novamente. Porque não quero, não ainda, não agora, olhar para dentro desse baú e revirar todas as coisas.

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