quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Pouca farinha no leite

Éramos seis, e hoje somos até mais, mas estamos cada vez menos juntos. Quando estávamos empolgados demais, era assim que a mãe nos refreava. “Pouca farinha no leite, vocês”. E tratávamos de conter o excesso, seja do que fosse. A frase também era muito usada para os assuntos de namoro. “Olha, olha, pouca farinha no leite com a Fulana, viu?”. Mas para isso eu e o meu irmão não dávamos bola. Pelo contrário. Com as namoradas, o que mais queríamos era abusar da farinha no leite e do leite na farinha. Elas gostavam.

Pensando bem, em geral a expressão era usada quando estávamos a falar bobagem. Não estou falando de obscenidades, nunca fomos chegados a isso. Nem de piadas picantes, ou de safardanagens e fofocas em geral. Mas as coisas idiotas, as situações ridículas em que às vezes nos metíamos. Gostávamos de rir de nós mesmos. Depois ficamos mais sérios. Ficamos mais metidos a grandes coisas, e algumas até fizemos e conquistamos. Mas fomos perdendo a capacidade de rir do próprio nariz, de fazer piada com a própria burrice.

Quando paro para pensar, acredito que isso se deve ao excesso de porrada que levamos de todos os lados. Se fôssemos boxeadores, estaríamos todos no quarto de hotel, com o nariz quebrado, a lembrar dos bons tempos, do tempo antes de conquistar o primeiro campeonato. É só o que sobra. A lembrança.

Outro dia tive um sonho horroroso. E tratava exatamente da lembrança. Alguém estava ameaçando levar a minha memória embora. Demorei a descobrir que aquela sombra terrível significava isso: perder a memória. O sujeito não tinha rosto, era somente uma presença incômoda que começava a se aproximar. E então eu começava a ver as coisas boas que me aconteceram. O meu primeiro jogo de xadrez. O meu skate. Um único e maravilhoso gol que fiz de bicicleta. Uma bicicleta. O primeiro disco que comprei, um LP dos Beatles.

E então eu olhava para trás, e o xadrez havia desaparecido. O skate sumia das minhas mãos. E embaixo dele estavam colados dezenas de adesivos que eu colecionava. Até a bicicleta começava a desaparecer. E o meu gol maravilhoso também desaparecia feito aquela foto do filme “De volta para o futuro”. Eu me agarrei ao LP dos Beatles e falei para o sujeito sem rosto, quase gritando: “Esse não, esse é meu, ninguém vai levar o Sargento Pimenta. Pode ir embora, xô, maluco...”

E eu acordei, com uma cotovelada certeira da Patroa. Por causa disso, hoje de manhã fui para o hospital, ó meus sete leitores, e só agora estou atualizando o blog.

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