Fiz o que eu fazia todos os dias. Reuni a papelada, peguei a fita, deixei recados e me preparei para ir embora. Já estava de casaco quando resolvi dar uma espiada para o lado de fora. Da janela do primeiro andar, vi uma porção de índios só de calção e chinelos e um monte de índios sem calção, sem camisa e descalços. Eram cerca de 100 índios. Todos estavam pintados de urucum, preto e amarelo. Cada um carregava algum tipo de arma. Havia facas, lanças, bordunas e também arcos e flechas. Senti um arrepio percorrer a minha coluna ao perceber que um dos índios havia me notado e agora apontava para mim, na janela. Dezenas de cabeças se voltaram na minha direção. Eu ia me agachar, mas pensei em John Wayne. Por isso, levantei a mão direita como Tonto e acenei como Juscelino. (Continua)
_Ráo! – eu disse, corajosamente, da minha janela. Dezenas de índios fizeram careta. Uns trinta cuspiram no chão. Não sei porquê, mas índio e chinês gostam muito de cuspir no chão. Também fiz uma careta, de nojo, e repeti o “Ráo”. João Uéine teria ficado orgulhoso. Fiz menção de que sairia pela janela, mas recuei e entrei novamente. Aquilo deve ter deixado os índios confusos. Eu certamente estava muito confuso.
Enquanto descia as escadas eu fiquei pensando no que o João Uéine teria feito na mesma situação. Teria chamado a cavalaria? Teria disparado o trabuco? Teria mancado a perna? Teria mascado fumo? Teria tomado um uísque? Teria chutado a fogueira com um belo pontapé? E com essas besteiras na cabeça perdi um tempo precioso. E já estava na portaria quando percebi que ainda não sabia o que iria falar para os índios. O porteiro, que se chamava Manuel, me olhava com assombro. Eu, de repente e por um segundo, pensei estar vivendo uma piada de português.
_Abre aí, Manuel, que eu vou falar com a indiarada. Deixa comigo!
Manuel me olhou desamparado. O lábio inferior tremia. Pegou o boné de guarda e o apertou contra o peito, como numa cena de despedida e enterro no faroeste. E apertou o botão da porta. Eu saí e bati a porta atrás de mim. Imediatamente os índios me cercaram. Olhei para um grandalhão na minha frente e disse, com voz de dublador de João Uéine:
_Você é o líder? Eu quero falar com o líder! A-go-ra!
_O chefe é o Ramiro, disse o grandalhão.
_E Ramiro lá é nome de chefe? Não tem Raoni, Aritana, Nuvem Vermelha?
_E Ramiro sou eu, disse o grandalhão.
_Ráo, eu sou o Careca. E estou indo chamar o meu chefe. Até lá vocês esperam aqui, falou?
_Ráo é o cara...
Mas não esperei pelo final. Fui atravessando os índios na valentia, olho no olho, e consegui chegar até o carro. Entrei e travei a porta. Em dez segundos eu estava longe dali.
No dia seguinte, procurei alguma notícia sobre os índios nos jornais. Nada. Depois do almoço, na hora de entrar no trabalho, nem sombra de Manuel na portaria. Perguntei para o Joaquim, o porteiro do horário, se havia acontecido alguma coisa com o Manuel. Aliás, Joaquim e Manuel eram uma dupla do baralho...
_Não sei não, senhor. E hoje ele está de folga. A gente que é porteiro trabalha dia sim, dia não.
Não comentei nada sobre os índios com ninguém, nem com o Lelé. Na hora de sair, juntei as minhas coisas e me mandei. Não havia sinal de índio na hora em que entrei no carro. Quando as coisas não se manifestam, o melhor é não se manifestar. Ou, como dizia meu amigo Velho Tom, o que está quieto é melhor deixar quieto. No dia seguinte, dou de cara com o Manuel na portaria.
_Fala Manuel? E os índios, como ficou?
_Tudo bem. Fiz como o doutor falou.
_Eu disse alguma coisa?
_Você disse que ia chamar o chefe. Eu e os índios esperamos até o chefe chegar.
_E o chefe veio?
_Chegou eram umas onze horas.
_E aí?
_E aí que ele conversou com os índios um tempão. Depois levou o chefe e mais um monte de índios ali, para o bar. Daqui eu escutava os gritos dos índios. E o chefe berrava que a cerveja era por conta dele. No final, saíram de lá abraçados, trocando os pés. Depois o chefe voltou e só perguntou quem era o Careca.
_Perguntou, é? Ninguém me deu nenhum recado.
_Vai entender, né?
_Pois é.
E fui trabalhar normalmente. Depois do programa, o telefone toca no estúdio. É o Manuel.
-O chefe quer falar contigo. É pra ir até a sala dele.
Antes de subir, bati a minha carta de demissão. E foi assim, com os índios lá fora, que eu saí do mundo do rádio.
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