quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Meu pai
Elvis dança Henry Mancini
Aprendi a fazer arroz com meu pai. É bem verdade que minha mãe é uma campeã da cozinha, mas foi o meu pai que me ensinou a fazer arroz. Isso aconteceu numa das vezes que fomos sozinhos, só eu e ele, para a antiga chácara da família, na beira do Rio Areias. Meu pai me mostrou como picar a cebola e fatiar o alho bem fino. Também mostrou como lavar o arroz numa peneira fina ou numa tampa de panela. E depois de me ensinou que o melhor é começar com uma fritada da cebola e do alho com azeite, manteiga ou óleo, até que estejam bem dourados. Na seqüência, adicionar pitadas de sal e o arroz pré-lavado, que deve refogar um pouquinho, com mexidas rápidas da colher para que nada fique colado ao fundo. Em seguida, água(não muita) e fogo médio. A panela deve ficar com a tampa por um bom tempo, até que você dê uma espiada e veja que existem pequenos furos por onde sai o vapor do arroz. Até esse ponto ainda é possível consertar algum erro, adicionar algum tempero, corrigir o sal. Depois, babau. Mas por enquanto, era de bom tom deixar a tampa pela metade, para que o arroz secasse no ponto certo. Para que ficasse bem solto, serviram a fritada rápida, a refogada e o óleo.
Ainda me lembro que esse dia foi um dos poucos que passamos juntos somente eu e meu pai, sem irmãos e mãe. Tínhamos passado algumas horas cavando e protegendo uma nascente, de onde captávamos água para o abastecimento da casa. Era uma estrutura meio artesanal, que utilizava um declive e a força de carneiros mecânicos para encher uma caixa dágua. A falta dágua encanada talvez fosse o motivo de estarmos sós, já que sem ela a casa ficava muito desconfortável para minha mãe e irmãs. Meu irmão mais velho estava em algum lugar em São Paulo, nessa época. O caseiro da chácara era idoso e vivia doente, de modo que eu era a única outra mão de obra masculina com que meu pai poderia contar para resolver o problema na captação da água. Foi um trabalho pesado, mas proveitoso. Conseguimos arrumar tudo até a hora do almoço, que meu pai havia prometido fazer.
Além do arroz, meu pai também fez bife acebolado com muita pimenta do reino e sal, ovo frito e feijão. Apanhamos pimenta de um pé que havia nos fundos da casa, bem perto da cozinha. Era uma pimenta comprida como a malagueta, mas amarela. Vinha da Amazônia e ardia de fazer lágrimas nos olhos. Também havia na horta tomates pequenos e alfaces. Dividimos ali uma cerveja e tivemos um senhor banquete. Não deixamos sobrar nada, nem mesmo a rapa da panela de arroz, que é especialmente deliciosa quando se está faminto e cansado do trabalho braçal. Depois acendi um cigarro (ele já havia parado de fumar muitos anos antes) e tomamos café.
Não faço idéia sobre o que conversamos antes, durante ou depois do almoço. Nessa época, eu era um selvagem arrogante, que achava que sabia tudo e sem muito respeito até mesmo a quem devia muito. E eu devo principalmente a meu pai. Lembro de observar seus movimentos com a faca, o cuidado com que tirava a casca da cebola, com que descascava o alho. Antes, deixara a torneira aberta, a água corrente protege os olhos dos sumos que fazem a gente chorar.
No filme que brinco de fazer com a minha memória, não há música nesta cena, só uma luz forte que parece brotar da parede da cozinha e amarelar um pouco a imagem do meu pai. Ele está ali, de óculos com uma armação pesada, a camisa de mangas curtas, os dois botões de cima abertos, sua calça jeans de pescaria e botinas. Ele me explica como posso fazer o arroz, mas não consigo ouvir direito o que ele diz, talvez não esteja prestando mesmo atenção. Sou o contrário do meu pai em minhas negações e queixas. No entanto, é ali, naquele instante, a primeira vez que me dou conta de que jamais poderei prescindir da sua companhia. E essa certeza me atinge como um raio.
Meu pai completa hoje 80 anos. E agradeço a Deus o privilégio de estarmos próximos, como pai e filho devem ser.
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4 comentários:
parabéns pra vocês dois <3
Carecone,
Ando sumido dos blogs, não consigo nem cuidar do Espalitando. Mas é bom voltar aqui e relembrar que você bota pra fuder. A gente precisa dessa leveza.
abraço.
Leila, obrigado. Tudo de bom pra você.
Bono, você é um cara gentil e modesto. Abç,
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