Minha irmã mais nova me deu um par de caixinhas de som neste Natal. São pequeninas e poderosas e na parte de cima possuem uma caixinha de acrílico transparente, cheia de água ou coisa parecida. Ao ligar, a caixa d'água fica parecendo uma fonte luminosa, com luzes em neon azul e verde esguichando jatos coloridos ao ritmo da música. É bem legal, gostei.
Fiquei viciado nas caixinhas, confesso. Coloco músicas velhas e recheadas de memórias o tempo todo, meus filhos ficam pedindo para que eu abaixe o volume. Quando eu coloco mais baixo, deslizando o controle bem devagarinho, é como se eu iniciasse a contagem regressiva para uma impossível viagem no tempo.
Agora toca o Roberto Carlos, dizendo que na cidade agora, do outro lado tem, alguém que vive sem saber que eu vivo aqui também. Eu abaixo o volume devagar,cinco, quatro, três, dois, ummm.
Na cidadezinha onde nasci havia uma fonte luminosa bem caprichada, diziam que era importada - que é o que se dizia quando se gostava da qualidade de qualquer coisa. Mudamos muito? Eu e meus primos íamos com fogos, bombinhas e traques para a praça da fonte. Às seis da tarde, tocava Ave Maria, a gente respeitava. Depois vinha o Hino Nacional, a gente respeitava. Aí vinha a Vanuza, cantando Paralelas, a gente respeitava, era uma emoção ver os jatos d´água coloridos ouvindo "Copacabana essa semana, o mar, sou eu". Nunca entendi os versos, mas sempre achei bonito pra dedéu. Depois vinha o Moacir Franco e aí a gente começava a soltar bombinhas que ninguém é de ferro.
Meu primo Carlaile era especialista em soltar traques submarinos. Ele acendia o traque e segurava o danado um tempo absurdo, a gente jurava que aquilo iria estourar nos dedos dele, mas no último segundo ele atirava o palito na fonte de um jeito esquisito, que eu nunca consegui imitar. Com a respiração suspensa a gente conseguia ver em câmera lenta o traque mergulhar e subir milagrosamente, estourando dentro d´água. Não fazia muito barulho e ninguém se incomodava com os estalos enquanto tocava Ronnie Von, Alcione, Agnaldo Timóteo e Beth Carvalho. Aí tocava o Odair José, a gente respeitava. O Raul Seixas, a gente respeitava. Os Secos e Molhados, a gente respeitava, hipnotizados com a dança colorida das águas. Depois vinha outra do Moacir Franco e a gente voltava a soltar bombas.
Meu primo Ivo era o tal com bombinhas. Ele sabia um jeito de aumentar o poder explosivo do Cabeção Número 2 usando fita Durex. Colocado debaixo de uma lata de ervilhas, a latinha subia uns vinte metros e descia aberta como uma margarida. Com barbante e Durex ele conseguia quintuplicar a potência de um Cabeção Número 4. A explosão era fortíssima, dava pra levantar tampa de bueiro, metia medo. Por causa disso, meu primo cumpria uma suspensão meio permanente no comércio local. Ninguém vendia o Número 4 para ele. Mas eu e boa parte dos meninos da praça da fonte não podíamos deixar de aproveitar o seu gênio explosivo. Em cada bolso, havia pelo menos um Cabeção Número 4 especialmente preparado para o gran finale, a grande-hiper-mega-duca-explosão antes do Jornal Nacional, que era a hora de todos estarmos de volta.
Nessa noite, cada um de nós reservou um explosivo para soltar ao mesmo tempo, na hora do Vira, dos Secos e Molhados, que tocava sempre antes do encerramento. A fonte ficava uma loucura, com meninos e meninas dançando e berrando as corujas, os pirilampos, os sacis e as fadas. Na hora combinada, todos nós acendemos e atiramos as bombas dentro d´água, todos menos o meu primo Carlaile. Ali, naquele instante, ele tentou inventar o Cabeção Número 4 Submarino Explosivo e segurou a bomba daquele jeito esquisito, como se segurasse um pombo, um pardal, um passarinho que fosse voar. E eu me lembro de pensar que não daria tempo, que o Cabeção Número 4 era diferente, que se aquilo explodisse levaria uns dois ou três dedos da mão do meu primo, que eu podia rezar bem depressa para aquilo acabar logo, que se o Cabeção Número 4 fosse um passarinho a explosão faria o seu bico ser lançado com toda força para a frente e acertar o olho de alguém, e mais um milhão de coisas loucas que passaram pela minha cachola, até que eu vi, na câmera lenta do último centésimo de segundo, meu primo lançar a bomba-submarino. Ela mergulhou com seu brilho de Durex e barbante e subiu, subiu, subiu, no último jato colorido da fonte e explodiu lá em cima, bem alto, um barulho que desabou sobre nossas cabeças e se somou a todas as outras explosões que fizeram zumbir todos os ouvidos durante um tempão.
Além de todos os castigos, ficamos proibidos de chegar perto da fonte durante o resto da infância.
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