Durante muito tempo ouvi dizer que só é possível escrever se você possui um bom motivo. Existem, é claro, bilhões de bons motivos por aí, e você só precisa de um deles - um bonzinho, nem precisa ser excelente - para por mãos à obra. Poderia ser por vaidade. Pelo desejo de ser amado. Pela vontade de ser lembrado. Por dinheiro. Pelo desafio. Uma aposta. Para impressionar uma pessoa. Para passar o tempo. Agradar ou desagradar alguém. Um presente. Uma piada. Uma chacota. Qualquer coisa.
Sim, descobri que não basta ter um motivo na cabeça. É preciso tê-lo pulsando no coração, é lógico. Também é preciso por mãos-à-obra, ter disciplina e um mínimo de dedicação diária. Mas o principal é o motivo. Por isso, confesso que fiquei um pouco surpreso quando percebi, logo após o início deste ano, que eu não conseguia mais encontrar nenhum motivo para escrever. As coisas que eu escrevia acabava apagando porque estavam carregadas de pessimismo e amargura, coisas que eu não queria e não quero deixar estampados no Caminho do Careca.
Poxa, tanta coisa acontecendo. O país em frangalhos. Os políticos aprontando. A turma de sempre e a turma mais nova roubando pra dedéu, e eu aqui, perdido num tremendo drama, sem encontrar nenhum motivo para sentar e escrever uma poucas linhas no blog, diariamente, como fiz durante tantos anos para mim e para minha querida kombi de leitores.
Tentei, com muito esforço, voltar a falar com entusiasmo e bom humor sobre as pequenas coisas que acontecem na minha vida e da minha família. Afinal, este blog sempre celebrou o impacto do que é irrelevante, o valor do que é perfeitamente descartável, a memória do que é efêmero. Mas a verdade é que um clima de sombreamento e melancolia acabou por me envolver e passei a considerar tudo, até mesmo o que é desimportante e pouco digno de nota, como algo que deveria ficar mesmo sem registro algum.
Sei que estou completamente errado, que é exatamente sobre as miseráveis e mínimas desventuras do cotidiano que devo me debruçar e escarafunchar até encontrar uma centelha de sentido, uma faísca cintilante de vida, mas, confesso, tenho sido burro demais para procurar nos lugares certos, só tenho achado coisas desesperadas e com um baixo astral da porra.
Por isso, depois de muito pensar e enrolar pacas, resolvi que vou escrever apenas quando der na veneta, ainda que não tenha nenhum motivo. O que me levou àquela música do Tim Maia. Que, por sua vez, me levou a uma rápida pesquisa na Internet que me fez descobrir que os 10 primeiros álbuns do Tim Maia se chamam "Tim Maia".
segunda-feira, 20 de julho de 2015
quinta-feira, 4 de junho de 2015
Uma nova mesa
A seca chegou e finalmente comecei a construir uma nova mesa com a madeira doada pelo meu irmão. Ele possuía em casa um eucalipto que teve que ser cortado. A velha árvore de mais de 10 metros de altura foi atingida por um raio há muito tempo e depois se transformou num imenso espantalho com galhos enormes secos. Para piorar, as raízes passaram a abrigar um enorme cupinzeiro. De toda a madeira, restaram aproveitáveis algumas grandes pranchas de três metrosX50cm cada. Ganhei três delas, que ficaram curtindo na minha garagem durante os últimos dois anos. Agora estão bem secas e, teoricamente, mais fáceis de trabalhar.
O único problema é que não possuo ferramentas elétricas adequadas para fazer o trabalho rapidamente. Cada prancha possui de 8 a 13 cm de espessura o que impossibilita o uso de uma serra circular. Seria preciso usar uma serra de sabre ou mesmo uma motoserra para desbastar a casca e acertar as laterais para uniformizar as medidas. Descartei a aquisição de novas ferramentas porque não teria outro uso para uma serra sabre e existe uma longa burocracia para aquisição de motoserra. Para quem não sabe, é preciso uma autorização do IBAMA para se possuir uma motoserra. Sem ela, o cidadão está sujeito a multa e apreensão do equipamento, sem falar na possibilidade de ser enquadrado num crime ambiental qualquer a gosto do fiscal de plantão.
Assim, minha única alternativa é usar bons serrotes manuais com o apoio da minha modesta plaina elétrica de 450W para uniformizar a espessura. Nesta semana iniciei os trabalhos com um serrote de 20 polegadas. Com uma hora de trabalho e apenas 20 centímetros de progresso percebi que ainda vou penar um bocado para conseguir transformar as pranchas em tábuas de mesa. Para disfarçar a minha preguiça, decidi aproveitar as bordas naturais de duas pranchas. Desse modo, ao invés de 6 bordas retas, vou precisar serrar "apenas" 4. A vinte centímetros por hora , terminarei a serragem, se tiver sorte, no final deste mês. Em seguida passarei para a plaina. A coisa fica mais complicada porque a capacidade da plaina é bem reduzida e não consegui grande progresso depois de uma hora de trabalho. Cada passagem alcança meio milímetro de uma faixa de apenas oito centímetros de largura, com muito ruído.
Além do protetor contra ruídos, o trabalho com a plaina exige o uso de máscara e a interrupção de tudo a intervalos de 10 minutos. A máquina aquece muito e gera muita serragem e pó. Para resumir, não estou conseguindo avançar como gostaria e às vezes acho que estou com um projeto literalmente acima das minhas forças: cada prancha pesa cerca de 60 quilos. Como tive que mover tudo sozinho, sem ajuda, foi preciso fazer malabarismos com cordas, rodas e apoios diversos apenas para colocar a prancha em local que possibilitasse o uso do serrote. Escolhi a área que fica sob a pérgula, já que é ventilado e não incomoda muito nenhum dos vizinhos. Entretanto, a pérgula não é coberta, e o medo das chuvas isoladas e intermitentes desta época do ano já me fez parar tudo para cobrir as pranchas rapidamente, da maneira mais protegida possível. Seja como for, estou animado e acho que vou conseguir terminar a mesa(90X300)até setembro. Torçam por mim.
O único problema é que não possuo ferramentas elétricas adequadas para fazer o trabalho rapidamente. Cada prancha possui de 8 a 13 cm de espessura o que impossibilita o uso de uma serra circular. Seria preciso usar uma serra de sabre ou mesmo uma motoserra para desbastar a casca e acertar as laterais para uniformizar as medidas. Descartei a aquisição de novas ferramentas porque não teria outro uso para uma serra sabre e existe uma longa burocracia para aquisição de motoserra. Para quem não sabe, é preciso uma autorização do IBAMA para se possuir uma motoserra. Sem ela, o cidadão está sujeito a multa e apreensão do equipamento, sem falar na possibilidade de ser enquadrado num crime ambiental qualquer a gosto do fiscal de plantão.
Assim, minha única alternativa é usar bons serrotes manuais com o apoio da minha modesta plaina elétrica de 450W para uniformizar a espessura. Nesta semana iniciei os trabalhos com um serrote de 20 polegadas. Com uma hora de trabalho e apenas 20 centímetros de progresso percebi que ainda vou penar um bocado para conseguir transformar as pranchas em tábuas de mesa. Para disfarçar a minha preguiça, decidi aproveitar as bordas naturais de duas pranchas. Desse modo, ao invés de 6 bordas retas, vou precisar serrar "apenas" 4. A vinte centímetros por hora , terminarei a serragem, se tiver sorte, no final deste mês. Em seguida passarei para a plaina. A coisa fica mais complicada porque a capacidade da plaina é bem reduzida e não consegui grande progresso depois de uma hora de trabalho. Cada passagem alcança meio milímetro de uma faixa de apenas oito centímetros de largura, com muito ruído.
Além do protetor contra ruídos, o trabalho com a plaina exige o uso de máscara e a interrupção de tudo a intervalos de 10 minutos. A máquina aquece muito e gera muita serragem e pó. Para resumir, não estou conseguindo avançar como gostaria e às vezes acho que estou com um projeto literalmente acima das minhas forças: cada prancha pesa cerca de 60 quilos. Como tive que mover tudo sozinho, sem ajuda, foi preciso fazer malabarismos com cordas, rodas e apoios diversos apenas para colocar a prancha em local que possibilitasse o uso do serrote. Escolhi a área que fica sob a pérgula, já que é ventilado e não incomoda muito nenhum dos vizinhos. Entretanto, a pérgula não é coberta, e o medo das chuvas isoladas e intermitentes desta época do ano já me fez parar tudo para cobrir as pranchas rapidamente, da maneira mais protegida possível. Seja como for, estou animado e acho que vou conseguir terminar a mesa(90X300)até setembro. Torçam por mim.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
Duas palavrinhas
Em casa somos todos muito bem educados. Mas na casa dos outros somos muito mais. Digo isto porque reparei que nós costumamos usar com muito mais frequência as expressões cotidianas de gentileza e boa educação, inclusive à mesa, quando estamos fora do lar. O garçom se aproxima e dizemos "por favor", agradecemos com um polidíssimo "muito obrigado". O flanelinha chega para vigiar o carro, cheio de doutor isso e doutor aquilo, e eu digo "pode vigiar, sim, senhor". No supermercado, dizemos para a senhora no caixa que é a crédito "sim, senhora, parcelado em três vezes, por favor". Na padaria, também, até nas filas dizemos por obséquio, por gentileza, senhor isso, senhora aquilo, e outras frases bem formais e elegantes, como se quiséssemos deixar bem claro o tempo todo que somos pessoas de bem e não representamos perigo para a pessoa que nos cerca.
Mas em casa, apesar da boa educação, não queremos perder tempo com firulas e frescuragens, então dizemos "passa aí as batatas". Ou então não dizemos nada e só apontamos para as batatas, ou pior ainda, só olhamos fixamente para a vasilha e o familiar que está mais próximo trata logo de passar as fritas. Essa maravilhosa adivinhação de desejos, aliás, é a forma mais comum de telepatia familiar.
_Não, senhor. A partir de hoje, acabou-se. Não custa nada ser gentil, amigável e bem-educado. Para qualquer coisa agora, se eu não escutar as duas palavrinhas mágicas, nada de batatas - disse a minha mulher.
_Passa o suco, please - disse o meu filho.
_Não vale inglês, francês e espanhol. Tem que dizer as duas palavrinhas mágicas em português. Estou falando sério - ela disse.
_Por favor? - disse o meu filho.
_Viu? Não doeu nada.
Então estamos todos os quatro à mesa, colocando a conversa em dia dos primeiros dias da volta às aulas. Os assuntos vão se sucedendo rapidamente, especialmente o longo debate sobre o melhor lugar para ficar na hora de sair da escola e as vantagens econômicas e recreativas de se levar o lanche de casa.
_Você gasta menos e não perde tempo do recreio na fila da lanchonete. Além disso, você se livra dos bicões de fila, que sempre pedem um taco ou ficam secando o lanche alheio. E o olho gordo de bicão de fila ninguém merece. Pode reparar que tem um bicão por perto toda vez que um salgadinho, um refri, ou mesmo um copo de suco escorregar da mão de alguém. Passa aí, as batatas.
_Duas palavrinhas - disse a minha mulher.
_Passa, agora - eu disse.
_Engraçadinho.
_A regra vale para todo mundo, paiê.
_Eu sei, eu sei.
Mas em casa, apesar da boa educação, não queremos perder tempo com firulas e frescuragens, então dizemos "passa aí as batatas". Ou então não dizemos nada e só apontamos para as batatas, ou pior ainda, só olhamos fixamente para a vasilha e o familiar que está mais próximo trata logo de passar as fritas. Essa maravilhosa adivinhação de desejos, aliás, é a forma mais comum de telepatia familiar.
_Não, senhor. A partir de hoje, acabou-se. Não custa nada ser gentil, amigável e bem-educado. Para qualquer coisa agora, se eu não escutar as duas palavrinhas mágicas, nada de batatas - disse a minha mulher.
_Passa o suco, please - disse o meu filho.
_Não vale inglês, francês e espanhol. Tem que dizer as duas palavrinhas mágicas em português. Estou falando sério - ela disse.
_Por favor? - disse o meu filho.
_Viu? Não doeu nada.
Então estamos todos os quatro à mesa, colocando a conversa em dia dos primeiros dias da volta às aulas. Os assuntos vão se sucedendo rapidamente, especialmente o longo debate sobre o melhor lugar para ficar na hora de sair da escola e as vantagens econômicas e recreativas de se levar o lanche de casa.
_Você gasta menos e não perde tempo do recreio na fila da lanchonete. Além disso, você se livra dos bicões de fila, que sempre pedem um taco ou ficam secando o lanche alheio. E o olho gordo de bicão de fila ninguém merece. Pode reparar que tem um bicão por perto toda vez que um salgadinho, um refri, ou mesmo um copo de suco escorregar da mão de alguém. Passa aí, as batatas.
_Duas palavrinhas - disse a minha mulher.
_Passa, agora - eu disse.
_Engraçadinho.
_A regra vale para todo mundo, paiê.
_Eu sei, eu sei.
terça-feira, 13 de janeiro de 2015
Ventiladores
Não há como não falar do calor. Se não fossem umas brisas ocasionais e os ventiladores ligados na potência máxima aqui em casa já teríamos derretido e grudado no colchão. Sim, durante o dia sempre é possível procurar um lugar mais arejado, uma esquina de vento, manter a hidratação na medida certa com bebidas geladas e leques, ou curtir um ventinho balançando nas redes. O problema é durante a noite. O calor espanta o sono e aumenta a insônia. Não temos ar condicionado nos quartos. Na época da reforma optamos pelos ventiladores de teto, uma decisão econômica e burra, e hoje disputamos os melhores ventiladores da casa.
Nem sempre foi assim, pois houve um tempo em que os ventiladores de teto funcionavam. Infelizmente, isso não durou muito. O eletricista que trabalhou na reforma , se dependesse de mim, seria jogado no meio do caminho dos quatro cavaleiros do Apocalipse para ser pisoteado na ida e na volta pela fome, guerra, peste e morte. Pensando bem, eu também entraria na fila. Mas não importa mais. Os ventiladores pifaram há uns quatro anos, eu mesmo troquei dois e um terceiro nunca funcionou direito. Os dois que eu troquei eram bem pebas e foram prejudicados pela instalação deficiente e pelos frequentes saltos de energia da minha rua no bairro. Aliás, foi durante a troca que fui perceber o péssimo trabalho do eletricista, que usou uma sequência de cores diferente do padrão. Por causa disso, no quarto do meu filho o ventilador só funciona se uma das lâmpadas do ventilador estiver um pouquinho acesa, o que só é possível se a potência do ventilador estiver no máximo, o dimmer estiver pela metade e o clic da lâmpada estiver desligado. Lembro de ter tentado várias combinações de fios e cores para corrigir a coisa, mas essa foi a minha melhor sequência então resolvi deixar como está até chamar um novo eletricista.
O grande problema dos eletricistas é que eles são careiros. Por isso, resolvi pegar umas indicações de eletricistas com o meu irmão. Como qualquer pessoa do mundo sabe, meu irmão não é o tipo de cara que joga dinheiro fora. Não me lembro de ninguém que o tenha chamado de mão-aberta, muito embora seja generoso de coração e alma. Por outro lado, uma das minhas irmãs costuma dizer que ele seria capaz de atravessar uma piscina olímpica com um Sonrisal em cada mão. Mas acho exagero.
_Tem o Benones e o Pecêzinho - disse o meu irmão.
_O Benones é aquele das lâmpadas do jardim? - eu disse.
_Isso, isso. Pô, você sempre lembra dessas lâmpadas. Foi um pequeno engano e ele corrigiu - disse ele.
_Corrigiu só a metade. Caramba, para ligar as lâmpadas eu ainda tenho que acionar três interruptores em três lugares diferentes, um na churrasqueira, outro na varanda e o terceiro na cozinha!
_Você precisa superar isso. O Benones é ótimo, você só precisa ficar junto dele para que o trabalho saia direitinho - disse meu irmão.
_Estou com preguiça de vigiar gente. E o Pecêzinho? Ele é bom? - eu disse.
_Bom, o cara é bom. Religioso. Ele é bem direito. Nunca foi preso. Não que eu saiba.
_Não, ele é bom eletricista?
_É. Quer dizer, ele é bom, mas o forte do Pecêzinho é a parte hidráulica.
_O Pecêzinho é bombeiro, então?
_É. Mas ele manja de elétrica. Se o Benones não puder, vai de Pecêzinho que ele dá conta do recado.
_Peraí, mas lá na sua casa não teve aquele problema de vazamento e infiltração?
_Teve, mas já está tudo resolvido. O Pecêzinho mesmo foi lá e arrumou tudo.
_Que bom, que bom. Então me dá os telefones dos caras...
E depois eu agradeci ao meu irmão e guardei os telefones na carteira. O calor está grande, mas hoje estava até bem nublado. Então vou esperar mais um pouco. Não custa nada, não é? E aqui em casa tem ventilador portátil pra todo mundo.
Nem sempre foi assim, pois houve um tempo em que os ventiladores de teto funcionavam. Infelizmente, isso não durou muito. O eletricista que trabalhou na reforma , se dependesse de mim, seria jogado no meio do caminho dos quatro cavaleiros do Apocalipse para ser pisoteado na ida e na volta pela fome, guerra, peste e morte. Pensando bem, eu também entraria na fila. Mas não importa mais. Os ventiladores pifaram há uns quatro anos, eu mesmo troquei dois e um terceiro nunca funcionou direito. Os dois que eu troquei eram bem pebas e foram prejudicados pela instalação deficiente e pelos frequentes saltos de energia da minha rua no bairro. Aliás, foi durante a troca que fui perceber o péssimo trabalho do eletricista, que usou uma sequência de cores diferente do padrão. Por causa disso, no quarto do meu filho o ventilador só funciona se uma das lâmpadas do ventilador estiver um pouquinho acesa, o que só é possível se a potência do ventilador estiver no máximo, o dimmer estiver pela metade e o clic da lâmpada estiver desligado. Lembro de ter tentado várias combinações de fios e cores para corrigir a coisa, mas essa foi a minha melhor sequência então resolvi deixar como está até chamar um novo eletricista.
O grande problema dos eletricistas é que eles são careiros. Por isso, resolvi pegar umas indicações de eletricistas com o meu irmão. Como qualquer pessoa do mundo sabe, meu irmão não é o tipo de cara que joga dinheiro fora. Não me lembro de ninguém que o tenha chamado de mão-aberta, muito embora seja generoso de coração e alma. Por outro lado, uma das minhas irmãs costuma dizer que ele seria capaz de atravessar uma piscina olímpica com um Sonrisal em cada mão. Mas acho exagero.
_Tem o Benones e o Pecêzinho - disse o meu irmão.
_O Benones é aquele das lâmpadas do jardim? - eu disse.
_Isso, isso. Pô, você sempre lembra dessas lâmpadas. Foi um pequeno engano e ele corrigiu - disse ele.
_Corrigiu só a metade. Caramba, para ligar as lâmpadas eu ainda tenho que acionar três interruptores em três lugares diferentes, um na churrasqueira, outro na varanda e o terceiro na cozinha!
_Você precisa superar isso. O Benones é ótimo, você só precisa ficar junto dele para que o trabalho saia direitinho - disse meu irmão.
_Estou com preguiça de vigiar gente. E o Pecêzinho? Ele é bom? - eu disse.
_Bom, o cara é bom. Religioso. Ele é bem direito. Nunca foi preso. Não que eu saiba.
_Não, ele é bom eletricista?
_É. Quer dizer, ele é bom, mas o forte do Pecêzinho é a parte hidráulica.
_O Pecêzinho é bombeiro, então?
_É. Mas ele manja de elétrica. Se o Benones não puder, vai de Pecêzinho que ele dá conta do recado.
_Peraí, mas lá na sua casa não teve aquele problema de vazamento e infiltração?
_Teve, mas já está tudo resolvido. O Pecêzinho mesmo foi lá e arrumou tudo.
_Que bom, que bom. Então me dá os telefones dos caras...
E depois eu agradeci ao meu irmão e guardei os telefones na carteira. O calor está grande, mas hoje estava até bem nublado. Então vou esperar mais um pouco. Não custa nada, não é? E aqui em casa tem ventilador portátil pra todo mundo.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
A terrível Voz de Boneca
Não havia outras crianças na minha rua. Mas agora tem uma porção. Meus filhos acharam ótimo, é óbvio. E nestas férias estão se esbaldando. Eles descem a rua de patins. Descem a rua de skate. Andam de bicicleta. Jogam bola. Brincam de esconder e pega-pega. E ficam trançando de uma casa para outra aproveitando o sol forte e as piscinas. Por algum motivo qualquer, a meninada fica mais tempo na piscina daqui de casa. O sol esquenta a rua rapidinho, então eles vão para a piscina de manhã, saem para o almoço e voltam uma hora depois, ficando dentro d´água até o final da tarde. Depois fazem uma pausa para o lanche, brincam na rede(eu finalmente coloquei os ganchos de rede!) e caem na piscina. Os dias parecem estar especialmente longos, outro dia saíram da piscina às oito da noite e estava apenas começando a anoitecer.
Eu gosto de ficar por perto, sem interferir muito. Só não gosto que falem palavrão e gritem muito. Gíria e palavrão viram maus hábitos, minha mãe me ensinou, e depois de grande não há como corrigir a boca suja.
_O próximo a falar palavrão vai ficar cinco minutos fora da piscina - eu digo. E funciona. Durante uns dez minutos.
_Quem falar palavrão vai ser o "pego" do Marco Pólo! - eu digo. E isso tem mais funcionado por mais tempo.
Já o preconceito com a gritaria é por conta da velha história de Pedro e o Lobo. Gritando toda hora, não há como acudir na hora da necessidade, além de ser cansativo. Em geral fico dentro da oficina, fazendo uma tábua de cortar carne, envernizando uma bandeja ou afiando uma ferramenta. Somando com os meus dois filhos, quase todos os dias tenho de seis a oito crianças na piscina, o que gera uma algazarra bem barulhenta mesmo se ninguém gritasse.
Ah, também não gosto que façam xixi na piscina. Por isso desenvolvi o estratagema do perigo químico.
_Meninos e meninas, prestem atenção. Estou usando um cloro especial. Quem fizer xixi na piscina corre o risco de ficar cercado por uma mancha azul, que é muito difícil de sair da pele e da roupa de banho. O melhor é usar o banheiro que fica ali atrás, combinado? - eu digo todas as vezes. Mas acho que já descobriram que é balela porque estou usando cloro como nunca.
Então têm sido dias maravilhosos. A única coisa que me chateia é a terrível Voz de Boneca de uma das crianças. Não é a voz dela de verdade. Aliás, ela tem até uma voz bonita. É uma voz que ela "faz", que fica parecendo uma boneca de desenho animado mal-dublada. É insuportável, essa voz. Tenho vontade de sair correndo, é uma coisa que me transtorna. E o pior é que já tentei de tudo para acabar com a bonequice.
_Quem não fizer Voz de Boneca vai ganhar biscoito de chocolate - eu disse e dancei no pacote de biscoitos para cinco crianças que não fizeram Voz de Boneca. Só a menina que faz a Voz é que não ganhou.
_Eu nem gosto de chocolate - ela disse, com aquela vozinha terrível.
Eu gosto de ficar por perto, sem interferir muito. Só não gosto que falem palavrão e gritem muito. Gíria e palavrão viram maus hábitos, minha mãe me ensinou, e depois de grande não há como corrigir a boca suja.
_O próximo a falar palavrão vai ficar cinco minutos fora da piscina - eu digo. E funciona. Durante uns dez minutos.
_Quem falar palavrão vai ser o "pego" do Marco Pólo! - eu digo. E isso tem mais funcionado por mais tempo.
Já o preconceito com a gritaria é por conta da velha história de Pedro e o Lobo. Gritando toda hora, não há como acudir na hora da necessidade, além de ser cansativo. Em geral fico dentro da oficina, fazendo uma tábua de cortar carne, envernizando uma bandeja ou afiando uma ferramenta. Somando com os meus dois filhos, quase todos os dias tenho de seis a oito crianças na piscina, o que gera uma algazarra bem barulhenta mesmo se ninguém gritasse.
Ah, também não gosto que façam xixi na piscina. Por isso desenvolvi o estratagema do perigo químico.
_Meninos e meninas, prestem atenção. Estou usando um cloro especial. Quem fizer xixi na piscina corre o risco de ficar cercado por uma mancha azul, que é muito difícil de sair da pele e da roupa de banho. O melhor é usar o banheiro que fica ali atrás, combinado? - eu digo todas as vezes. Mas acho que já descobriram que é balela porque estou usando cloro como nunca.
Então têm sido dias maravilhosos. A única coisa que me chateia é a terrível Voz de Boneca de uma das crianças. Não é a voz dela de verdade. Aliás, ela tem até uma voz bonita. É uma voz que ela "faz", que fica parecendo uma boneca de desenho animado mal-dublada. É insuportável, essa voz. Tenho vontade de sair correndo, é uma coisa que me transtorna. E o pior é que já tentei de tudo para acabar com a bonequice.
_Quem não fizer Voz de Boneca vai ganhar biscoito de chocolate - eu disse e dancei no pacote de biscoitos para cinco crianças que não fizeram Voz de Boneca. Só a menina que faz a Voz é que não ganhou.
_Eu nem gosto de chocolate - ela disse, com aquela vozinha terrível.
sexta-feira, 9 de janeiro de 2015
Que bicho é esse?
Uma das grandes vantagens de se morar numa casa é a área verde. O quintal faz toda a diferença, especialmente se você tem crianças e gosta de se aventurar como jardineiro, mantendo uma pequena coleção de orquídeas, brincando de fazer horta ou apenas vigiando uma árvore frutífera. Sou um felizardo. Aqui em casa posso fazer tudo isso.
É claro que também existem pequenos dissabores. Outro dia uma ventania forte quebrou um galho grande do quintal do vizinho que desabou sobre um pé de acerola e derrubou um pedaço da minha cerca. Às vezes aparecem gambás e morcegos, mas desde que as corujas começaram a morar aqui, tenho tido menos problemas com bichos do lado negro da força. As árvores frutíferas, o que inclui dois coqueiros, e o gramado bem aparado garantem uma diversidade de pássaros o ano inteiro. O quintal é uma festa para os ouvidos. Os bichos com asas ficam garimpando insetos o dia todo nessa época do ano e só muito de vez em quando entra algum dentro de casa.
O único problema é que os insetos sempre aparecem no quarto da minha filha. E quando isso acontece ela sempre faz do mesmo jeito.
_Paiê, que bicho é esse? - ela diz.
Sim, todo pai é um entomologista amador. E alguns poucos são até mesmo entomologistas profissionais. Mas eu não. Eu chuto. E no início foi fácil. Grilo, esperança, vespa, vespão, vespa do mal eterno, aranha, aranha miúda, aranha papa-moscas, aranhona, formiga, saúva, formiguinha preta, formiga vade retro, minhoca, minhocão, lesma, lesma lerda, lagarta, lagartão de bruxa, e mais uma miríade de seres alados, terrestres e aquáticos para os quais eu sempre soube inventar um nome mais ou menos lógico ou verossímil. Mas ontem a coisa ficou difícil.
_Isso aí é um besouro, também chamado de bicho-do-côco - eu disse.
_Tem certeza, paiê? - disse a minha filha.
_Claro, com essas garras fortes dianteiras, é o inconfundível besouro do coquinho ou bicho-do-côco. Ele tem uma larva branquinha que entra dentro do coquinho e vai engordando lá dentro.
_E aqui em casa tem desse coquinho? - ela disse.
_Não. Tem daquele coquinhozinho menor, acho que não cabe a larva desse besouro.
_E então como esse bicho veio parar aqui em casa, dentro do meu quarto?
_Vai ver o besouro estava procurando um coqueiro dos que ele gosta e se confundiu com os nossos coqueiros, ué. Para falar a verdade, não tenho a menor idéia de como ele veio parar aqui, mas que é um besouro do coquinho não tenho a menor dúvida.
_Vou conferir na Internet - disse minha filha.
_Não acredita no seu pai? - eu disse.
_É que você às vezes inventa, paiê.
_Na internet inventam muito mais. Outro dia eu vi a foto de um tubaivota, uma mistura de tubarão com gaivota.
Depois de alguns minutos, ela voltou.
_Pai, acho que foi a primeira vez que você acertou.
É claro que também existem pequenos dissabores. Outro dia uma ventania forte quebrou um galho grande do quintal do vizinho que desabou sobre um pé de acerola e derrubou um pedaço da minha cerca. Às vezes aparecem gambás e morcegos, mas desde que as corujas começaram a morar aqui, tenho tido menos problemas com bichos do lado negro da força. As árvores frutíferas, o que inclui dois coqueiros, e o gramado bem aparado garantem uma diversidade de pássaros o ano inteiro. O quintal é uma festa para os ouvidos. Os bichos com asas ficam garimpando insetos o dia todo nessa época do ano e só muito de vez em quando entra algum dentro de casa.
O único problema é que os insetos sempre aparecem no quarto da minha filha. E quando isso acontece ela sempre faz do mesmo jeito.
_Paiê, que bicho é esse? - ela diz.
Sim, todo pai é um entomologista amador. E alguns poucos são até mesmo entomologistas profissionais. Mas eu não. Eu chuto. E no início foi fácil. Grilo, esperança, vespa, vespão, vespa do mal eterno, aranha, aranha miúda, aranha papa-moscas, aranhona, formiga, saúva, formiguinha preta, formiga vade retro, minhoca, minhocão, lesma, lesma lerda, lagarta, lagartão de bruxa, e mais uma miríade de seres alados, terrestres e aquáticos para os quais eu sempre soube inventar um nome mais ou menos lógico ou verossímil. Mas ontem a coisa ficou difícil.
_Isso aí é um besouro, também chamado de bicho-do-côco - eu disse.
_Tem certeza, paiê? - disse a minha filha.
_Claro, com essas garras fortes dianteiras, é o inconfundível besouro do coquinho ou bicho-do-côco. Ele tem uma larva branquinha que entra dentro do coquinho e vai engordando lá dentro.
_E aqui em casa tem desse coquinho? - ela disse.
_Não. Tem daquele coquinhozinho menor, acho que não cabe a larva desse besouro.
_E então como esse bicho veio parar aqui em casa, dentro do meu quarto?
_Vai ver o besouro estava procurando um coqueiro dos que ele gosta e se confundiu com os nossos coqueiros, ué. Para falar a verdade, não tenho a menor idéia de como ele veio parar aqui, mas que é um besouro do coquinho não tenho a menor dúvida.
_Vou conferir na Internet - disse minha filha.
_Não acredita no seu pai? - eu disse.
_É que você às vezes inventa, paiê.
_Na internet inventam muito mais. Outro dia eu vi a foto de um tubaivota, uma mistura de tubarão com gaivota.
Depois de alguns minutos, ela voltou.
_Pai, acho que foi a primeira vez que você acertou.
quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
Bolsas
Minha mulher adora bolsas. E nestes mais de 15 anos de casados, ela já teve uma porção delas, tantas que perdi a conta. Basta dizer que ela costuma usar rotineiramente umas 4 bolsas, alternando o uso entre o trabalho e as outras saídas cotidianas. Multiplique pelos dias úteis da semana e você já sabe quantas bolsas ela usa por mês.
Homem é diferente, é claro. Eu só uso uma única bolsa, preta, tipo capanga com aba. Tem bem uns 10 anos. Antigamente eu usava uma pochete, mas este foi um dos itens condicionais para o matrimônio. Ela só aceitou a aliança depois que eu prometi que não usaria a pochete, o pulôver sobre os ombros e nem a capa de telefone celular(o Neo) clipada no cinto. Eu parecia o Batman, fala a verdade!
Mas isso acabou. Embora reconheça que minha mania de pochete fosse imensa. Era tão grande que demorei uns 10 anos só para deixar de procurar coisas na minha cintura. Em plena crise de abstinência de pochete aderi ao chaveiro-mosquetão. Ando sempre com dois. Tenho mais chaves que um guarda penitenciário de filme antigo. E cópias. Organizadas em chaveiros-mosquetão.
O pulôver foi mais fácil de parar de usar nos ombros, nem penso mais nisso, ainda mais agora que faz calor em plena temporada de chuva. Além disso, o pulôver nos ombros ficou marcado como coisa de coroa, e coroas como eu não querem parecer ainda mais coroas. Só ando com ele amarrado na cintura. Minha mulher se afasta rápido quando amarro o pulôver e age como se não me conhecesse, apressando o passo. Aí eu também ando mais rápido, tentando alcançá-la, é uma confusão. Uma vez um guardinha chegou a me abordar no shopping.
_A senhora conhece esse homem? - ele disse.
Minha mulher balançou a cabeça e o guardinha deu aquela pegada de pinça mecânica de caranguejo no meu pobre braço.
_É minha mulher! É minha esposa! - eu disse.
_Vamos conversar lá na salinha - disse o segurança.
_Eu posso provar, eu tenho a certidão de casamento aqui, ó - e eu puxo o documento, as certidões de nascimento das crianças, mostro o nome dela gravado na aliança. O guardinha, a contragosto, acabou se convencendo.
Só de pirraça, essa não foi a última vez que amarrei o pulôver na cintura. Ainda hoje, quando uso pulôver, eu amarro ele na cintura e minha mulher dispara a andar depressa só que eu não tento mais alcançá-la. Fico na minha, seguindo à distância, fingindo olhar as vitrines, atento às suas tentativas de se misturar com a multidão, como se eu fosse um agente secreto perseguindo uma espiã. Por alguns poucos minutos, coisa pouca mesmo, ela consegue escapar do meu campo de visão. Posso apostar que é nesse tempinho de nada que ela escolhe uma nova bolsa.
Homem é diferente, é claro. Eu só uso uma única bolsa, preta, tipo capanga com aba. Tem bem uns 10 anos. Antigamente eu usava uma pochete, mas este foi um dos itens condicionais para o matrimônio. Ela só aceitou a aliança depois que eu prometi que não usaria a pochete, o pulôver sobre os ombros e nem a capa de telefone celular(o Neo) clipada no cinto. Eu parecia o Batman, fala a verdade!
Mas isso acabou. Embora reconheça que minha mania de pochete fosse imensa. Era tão grande que demorei uns 10 anos só para deixar de procurar coisas na minha cintura. Em plena crise de abstinência de pochete aderi ao chaveiro-mosquetão. Ando sempre com dois. Tenho mais chaves que um guarda penitenciário de filme antigo. E cópias. Organizadas em chaveiros-mosquetão.
O pulôver foi mais fácil de parar de usar nos ombros, nem penso mais nisso, ainda mais agora que faz calor em plena temporada de chuva. Além disso, o pulôver nos ombros ficou marcado como coisa de coroa, e coroas como eu não querem parecer ainda mais coroas. Só ando com ele amarrado na cintura. Minha mulher se afasta rápido quando amarro o pulôver e age como se não me conhecesse, apressando o passo. Aí eu também ando mais rápido, tentando alcançá-la, é uma confusão. Uma vez um guardinha chegou a me abordar no shopping.
_A senhora conhece esse homem? - ele disse.
Minha mulher balançou a cabeça e o guardinha deu aquela pegada de pinça mecânica de caranguejo no meu pobre braço.
_É minha mulher! É minha esposa! - eu disse.
_Vamos conversar lá na salinha - disse o segurança.
_Eu posso provar, eu tenho a certidão de casamento aqui, ó - e eu puxo o documento, as certidões de nascimento das crianças, mostro o nome dela gravado na aliança. O guardinha, a contragosto, acabou se convencendo.
Só de pirraça, essa não foi a última vez que amarrei o pulôver na cintura. Ainda hoje, quando uso pulôver, eu amarro ele na cintura e minha mulher dispara a andar depressa só que eu não tento mais alcançá-la. Fico na minha, seguindo à distância, fingindo olhar as vitrines, atento às suas tentativas de se misturar com a multidão, como se eu fosse um agente secreto perseguindo uma espiã. Por alguns poucos minutos, coisa pouca mesmo, ela consegue escapar do meu campo de visão. Posso apostar que é nesse tempinho de nada que ela escolhe uma nova bolsa.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
Eu sou Charlie
Opinião não é crime. Pode ser um engano, um embuste, mau-gosto, errada, torta, enviesada, oblíqua, obtusa, mas não é crime.
Opinião também pode ser boa, excelente, enriquecedora, iluminadora, esclarecedora, bela, charmosa, inteligente, engraçada, crítica, simples, agradável, e nada disso é criminoso.
O exercício da opinião é libertador e essencialmente bom.
Nada justifica o terror, pois o terror jamais poderá ser justo ou justificado.
Opinião também pode ser boa, excelente, enriquecedora, iluminadora, esclarecedora, bela, charmosa, inteligente, engraçada, crítica, simples, agradável, e nada disso é criminoso.
O exercício da opinião é libertador e essencialmente bom.
Nada justifica o terror, pois o terror jamais poderá ser justo ou justificado.
terça-feira, 6 de janeiro de 2015
Corujas
Duas corujas "buraqueiras" se instalaram aqui em casa. Elas passam horas sobre uma luminária da janela do escritório e de vez em quando vão checar o ninho, feito dentro de uma saída pluvial no meio-fio. Acho que o cano deve estar entupido, pois tem chovido um bocado e as corujas continuam a entrar e sair do cano quando bem entendem.
É ótimo ter duas corujas em casa, o único inconveniente é que às vezes me esqueço delas. Outro dia, por exemplo, abri a janela do escritório distraído e comecei a escutar um barulho estranho, um "toc-toc-toc". Quando olhei para cima, uma das corujas estava com as asas abertas e ameaçava me atacar, fazendo "toc-toc-toc", um barulho que parecia vir de um bicho maior e mais violento do que uma coruja.
Tenho quase certeza de que uma delas é a mesma coruja que expulsei da oficina no final do ano passado, que eu fiquei chamando de Matilda. A outra, mais gordinha e um pouco menor, eu chamei de Gertrudes. Minha filha foi a primeira a observar que eu precisava mudar os nomes.
_Paiê, isso não está certo. É um casal de corujas. Um pai e uma mãe. Não pode ter dois nomes de menina - ela disse.
_Pensei nisso, pensei nisso. Mas veja bem. Eu não sei, e nunca vou saber, se essa que eu chamo de Matilda é uma menina ou menino. Pelo jeitão, pela agressividade - ela faz "toc-toc-toc" o tempo todo pra mim - ela bem que pode ser o homem da casa. Mas não tenho certeza. E se você quer saber, gostei de Matilde. Por outro lado, a Gertrudes é bem fofinha, parece que vai botar uns ovos, mas também pia forte e já me deu um rasante quando esqueci das duas e fui pegar o jornal na calçada. Então não dá pra ter certeza de que ela é ela. Ela pode ser ele. Por isso, ao invés de Gertrudes, eu pensei em um nome neutro, tipo Valdeci, que pode ser homem ou mulher, mas achei que não ficaria bem numa coruja. Pensando melhor, um nome neutro não fica bem em criatura nenhuma, né?
_E se a gente chamasse a Matilda de Alexandre? - ela disse.
_Ué, pode chamar. Mas para mim, vai continuar a ser Matilda.
_Mas aí não vale. Tem que ser um nome só.
_Aí é que você se engana. As duas são selvagens, a gente pode chamar do que for que elas nunca vão atender. Não é que nem o Rafa, elas nunca vão brincar de buscar e trazer com a gente.
_Bem que seria legal.
_E a Gertrudes, não vai trocar de nome? - eu disse.
_Harry - disse a minha filha.
_Harry? Como assim? Não foi você mesmo que disse que era um casal?
_E foi você que disse que não dá para saber o sexo de nenhuma das corujas.
_Não é sexo que se diz, é gênero - eu disse.
_Ah, sei lá, paiê, vai ver é um casal gay, ué.
É ótimo ter duas corujas em casa, o único inconveniente é que às vezes me esqueço delas. Outro dia, por exemplo, abri a janela do escritório distraído e comecei a escutar um barulho estranho, um "toc-toc-toc". Quando olhei para cima, uma das corujas estava com as asas abertas e ameaçava me atacar, fazendo "toc-toc-toc", um barulho que parecia vir de um bicho maior e mais violento do que uma coruja.
Tenho quase certeza de que uma delas é a mesma coruja que expulsei da oficina no final do ano passado, que eu fiquei chamando de Matilda. A outra, mais gordinha e um pouco menor, eu chamei de Gertrudes. Minha filha foi a primeira a observar que eu precisava mudar os nomes.
_Paiê, isso não está certo. É um casal de corujas. Um pai e uma mãe. Não pode ter dois nomes de menina - ela disse.
_Pensei nisso, pensei nisso. Mas veja bem. Eu não sei, e nunca vou saber, se essa que eu chamo de Matilda é uma menina ou menino. Pelo jeitão, pela agressividade - ela faz "toc-toc-toc" o tempo todo pra mim - ela bem que pode ser o homem da casa. Mas não tenho certeza. E se você quer saber, gostei de Matilde. Por outro lado, a Gertrudes é bem fofinha, parece que vai botar uns ovos, mas também pia forte e já me deu um rasante quando esqueci das duas e fui pegar o jornal na calçada. Então não dá pra ter certeza de que ela é ela. Ela pode ser ele. Por isso, ao invés de Gertrudes, eu pensei em um nome neutro, tipo Valdeci, que pode ser homem ou mulher, mas achei que não ficaria bem numa coruja. Pensando melhor, um nome neutro não fica bem em criatura nenhuma, né?
_E se a gente chamasse a Matilda de Alexandre? - ela disse.
_Ué, pode chamar. Mas para mim, vai continuar a ser Matilda.
_Mas aí não vale. Tem que ser um nome só.
_Aí é que você se engana. As duas são selvagens, a gente pode chamar do que for que elas nunca vão atender. Não é que nem o Rafa, elas nunca vão brincar de buscar e trazer com a gente.
_Bem que seria legal.
_E a Gertrudes, não vai trocar de nome? - eu disse.
_Harry - disse a minha filha.
_Harry? Como assim? Não foi você mesmo que disse que era um casal?
_E foi você que disse que não dá para saber o sexo de nenhuma das corujas.
_Não é sexo que se diz, é gênero - eu disse.
_Ah, sei lá, paiê, vai ver é um casal gay, ué.
domingo, 4 de janeiro de 2015
Fazendo sala
Os conselhos maternos são sábios e os bons exemplos também. Me arrependo profundamente de não ter aprendido com a minha mãe a fazer uma boa sala. Oportunidade não faltou. Ela até hoje faz uma sala fantástica, cheia de atenções e mimos, com o cafezinho chegando na hora certa, no tempo justo e perfeito. Não é só uma questão de encaixar uma boa conversa, fazer as perguntas no momento adequado, ouvir pacientemente e manter a cara de interessado no assunto quase sempre rotineiro e insípido das conversas cotidianas. É fazer tudo isso de coração aberto, coisa que não se finge nem se encena, é meio que um exercício de poesia. Ou todos os versos são bons e compõem uma coisa boa, ou tudo desanda e se acaba em rima pobre, a visita se irrita e quer sair logo da casa da gente.
Vendo a minha mãe, passei a dividir as pessoas em "saleiras" e "não-saleiras", não tem meio termo. Quem faz sala mais ou menos é ruim de xinfra, o "saleiro" de verdade não tem dia ruim, é quase sempre bom e muitas vezes excelente. Por isso, embora de vez em quando eu possa acertar mais do que errar, reconheço que sou do tipo "não-saleiro". Já tentei atribuir meus fracassos à minha mãe, que desde os meus tempos de menino sempre recebeu muita visita, tanta que eu acabava indo para os fundos da casa, cansado e entediado da conversa adulta que não entendia e que não me interessava. Mas um dia finalmente aprendi que os filhos culpam os pais por suas próprias falhas e que a maturidade só nos chega quando paramos de apontar para os outros e batemos no peito, arrependidos e com humildade sincera, e assumimos os nossos malfeitos e as decisões estúpidas.
O problema é que agora eu já estou meio chucro, feito pau torto, desaprendo mais do que aprendo as coisas. Então eu faço sala para as visitas observando a minha mulher, que é bem "saleira" e sabe tirar café na hora mais adequada. Sozinho eu me atrapalho todo, fico oferecendo coisas sem parar, interrompo conversa embalada, levanto antes da hora ou lembro de coisas urgentíssimas e sem a menor importância e perco o fio da meada no meio de um papo bacana.
_(...) E então, o que você acha? - perguntou outro dia uma visita importante, uma pessoa muito querida que veio me visitar.
_Hum, sobre isso não tenho opinião formada - eu disse.
_Como assim?
_Preciso refletir mais sobre o assunto. Ainda é cedo para ser assim...taxativo - eu disse, bem sério.
_Eu só perguntei se você acha que vai chover, criatura!
_Talvez. Que tal um cafezinho?
Sou eu, "não-saleiro".
Vendo a minha mãe, passei a dividir as pessoas em "saleiras" e "não-saleiras", não tem meio termo. Quem faz sala mais ou menos é ruim de xinfra, o "saleiro" de verdade não tem dia ruim, é quase sempre bom e muitas vezes excelente. Por isso, embora de vez em quando eu possa acertar mais do que errar, reconheço que sou do tipo "não-saleiro". Já tentei atribuir meus fracassos à minha mãe, que desde os meus tempos de menino sempre recebeu muita visita, tanta que eu acabava indo para os fundos da casa, cansado e entediado da conversa adulta que não entendia e que não me interessava. Mas um dia finalmente aprendi que os filhos culpam os pais por suas próprias falhas e que a maturidade só nos chega quando paramos de apontar para os outros e batemos no peito, arrependidos e com humildade sincera, e assumimos os nossos malfeitos e as decisões estúpidas.
O problema é que agora eu já estou meio chucro, feito pau torto, desaprendo mais do que aprendo as coisas. Então eu faço sala para as visitas observando a minha mulher, que é bem "saleira" e sabe tirar café na hora mais adequada. Sozinho eu me atrapalho todo, fico oferecendo coisas sem parar, interrompo conversa embalada, levanto antes da hora ou lembro de coisas urgentíssimas e sem a menor importância e perco o fio da meada no meio de um papo bacana.
_(...) E então, o que você acha? - perguntou outro dia uma visita importante, uma pessoa muito querida que veio me visitar.
_Hum, sobre isso não tenho opinião formada - eu disse.
_Como assim?
_Preciso refletir mais sobre o assunto. Ainda é cedo para ser assim...taxativo - eu disse, bem sério.
_Eu só perguntei se você acha que vai chover, criatura!
_Talvez. Que tal um cafezinho?
Sou eu, "não-saleiro".
sábado, 3 de janeiro de 2015
Maçãs
Depois que eu vi a cena na internet, fiquei relutante em relação a maçãs. Neste vídeo a moça explica que as maçãs dos supermercados e até das feiras estão sendo vendidas com grossas camadas de cera. Para demonstrar, a moça pega uma maçã do cesto de frutas e com uma faquinha faz uma raspagem de leve. A faquinha fica coberta de cera. Então ela lava a maçã com uma esponja macia e depois raspa com a faquinha. O resultado é bem parecido com o primeiro. Em seguida é a vez da bucha grossa, que a gente usa para arear panela. A moça usou o muque e esfregou com toda a força. Lavou, lavou, lavou. Nova raspagem e a cera continuava lá, na casca da fruta. E a cera se acumula no organismo, provoca uma série de problemas, blá, blá, blá.
Nesse ponto eu achei que era sacanagem, pouca coisa resiste a uma esponja grossa, mas continuei a ver o vídeo assim mesmo. A moça explicou que não havia remédio. Ou casca, ou cera. O que é uma pena porque boa parte dos nutrientes e vitaminas da maçã ficam na casca, como reza a ciência das donas-de-casa. Ela ainda mencionou a alternativa de se comprar maçãs orgânicas, mas já haviam se passado seis minutos e, de acordo com pesquisas científicas fidedignas, esse é o máximo de tempo que um homem consegue prestar atenção na conversa de uma mulher, seja ao vivo ou em vídeo.
É científico, brigue com a ciência, não comigo.
Fiquei com o vídeo na cabeça e depois resolvi fazer o teste aqui em casa. É incrível. A cera não sai nem com água quente e esponja de limpeza pesada. E é muita cera. Eu consumia umas duas maçãs enceradas por dia e, fazendo uma conta rápida, devo ter cera acumulada suficiente para umas duas quadras poliesportivas ficarem brilhando.
Então resolvi diminuir o consumo da fruta. O que é muito ruim, pois adoro maçãs.
Minha mulher percebeu e quis saber o motivo. Fiz o teste da faquinha e ela ficou mais impressionada do que eu. Então eu comecei a falar dos malefícios da cera acumulada no organismo, das maçãs orgânicas e minha mulher continuou a prestar atenção. Tive certeza então de que a recíproca não é verdadeira, pois eu fiquei falando bem mais de seis minutos, eu cronometrei, deu bem uns nove, dez minutos. Ou seja, homem pode falar à beça que mulher escuta, não tem limite de tempo cientificamente fidedigno.
Nesse ponto eu achei que era sacanagem, pouca coisa resiste a uma esponja grossa, mas continuei a ver o vídeo assim mesmo. A moça explicou que não havia remédio. Ou casca, ou cera. O que é uma pena porque boa parte dos nutrientes e vitaminas da maçã ficam na casca, como reza a ciência das donas-de-casa. Ela ainda mencionou a alternativa de se comprar maçãs orgânicas, mas já haviam se passado seis minutos e, de acordo com pesquisas científicas fidedignas, esse é o máximo de tempo que um homem consegue prestar atenção na conversa de uma mulher, seja ao vivo ou em vídeo.
É científico, brigue com a ciência, não comigo.
Fiquei com o vídeo na cabeça e depois resolvi fazer o teste aqui em casa. É incrível. A cera não sai nem com água quente e esponja de limpeza pesada. E é muita cera. Eu consumia umas duas maçãs enceradas por dia e, fazendo uma conta rápida, devo ter cera acumulada suficiente para umas duas quadras poliesportivas ficarem brilhando.
Então resolvi diminuir o consumo da fruta. O que é muito ruim, pois adoro maçãs.
Minha mulher percebeu e quis saber o motivo. Fiz o teste da faquinha e ela ficou mais impressionada do que eu. Então eu comecei a falar dos malefícios da cera acumulada no organismo, das maçãs orgânicas e minha mulher continuou a prestar atenção. Tive certeza então de que a recíproca não é verdadeira, pois eu fiquei falando bem mais de seis minutos, eu cronometrei, deu bem uns nove, dez minutos. Ou seja, homem pode falar à beça que mulher escuta, não tem limite de tempo cientificamente fidedigno.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
Fonte luminosa
Minha irmã mais nova me deu um par de caixinhas de som neste Natal. São pequeninas e poderosas e na parte de cima possuem uma caixinha de acrílico transparente, cheia de água ou coisa parecida. Ao ligar, a caixa d'água fica parecendo uma fonte luminosa, com luzes em neon azul e verde esguichando jatos coloridos ao ritmo da música. É bem legal, gostei.
Fiquei viciado nas caixinhas, confesso. Coloco músicas velhas e recheadas de memórias o tempo todo, meus filhos ficam pedindo para que eu abaixe o volume. Quando eu coloco mais baixo, deslizando o controle bem devagarinho, é como se eu iniciasse a contagem regressiva para uma impossível viagem no tempo.
Agora toca o Roberto Carlos, dizendo que na cidade agora, do outro lado tem, alguém que vive sem saber que eu vivo aqui também. Eu abaixo o volume devagar,cinco, quatro, três, dois, ummm.
Na cidadezinha onde nasci havia uma fonte luminosa bem caprichada, diziam que era importada - que é o que se dizia quando se gostava da qualidade de qualquer coisa. Mudamos muito? Eu e meus primos íamos com fogos, bombinhas e traques para a praça da fonte. Às seis da tarde, tocava Ave Maria, a gente respeitava. Depois vinha o Hino Nacional, a gente respeitava. Aí vinha a Vanuza, cantando Paralelas, a gente respeitava, era uma emoção ver os jatos d´água coloridos ouvindo "Copacabana essa semana, o mar, sou eu". Nunca entendi os versos, mas sempre achei bonito pra dedéu. Depois vinha o Moacir Franco e aí a gente começava a soltar bombinhas que ninguém é de ferro.
Meu primo Carlaile era especialista em soltar traques submarinos. Ele acendia o traque e segurava o danado um tempo absurdo, a gente jurava que aquilo iria estourar nos dedos dele, mas no último segundo ele atirava o palito na fonte de um jeito esquisito, que eu nunca consegui imitar. Com a respiração suspensa a gente conseguia ver em câmera lenta o traque mergulhar e subir milagrosamente, estourando dentro d´água. Não fazia muito barulho e ninguém se incomodava com os estalos enquanto tocava Ronnie Von, Alcione, Agnaldo Timóteo e Beth Carvalho. Aí tocava o Odair José, a gente respeitava. O Raul Seixas, a gente respeitava. Os Secos e Molhados, a gente respeitava, hipnotizados com a dança colorida das águas. Depois vinha outra do Moacir Franco e a gente voltava a soltar bombas.
Meu primo Ivo era o tal com bombinhas. Ele sabia um jeito de aumentar o poder explosivo do Cabeção Número 2 usando fita Durex. Colocado debaixo de uma lata de ervilhas, a latinha subia uns vinte metros e descia aberta como uma margarida. Com barbante e Durex ele conseguia quintuplicar a potência de um Cabeção Número 4. A explosão era fortíssima, dava pra levantar tampa de bueiro, metia medo. Por causa disso, meu primo cumpria uma suspensão meio permanente no comércio local. Ninguém vendia o Número 4 para ele. Mas eu e boa parte dos meninos da praça da fonte não podíamos deixar de aproveitar o seu gênio explosivo. Em cada bolso, havia pelo menos um Cabeção Número 4 especialmente preparado para o gran finale, a grande-hiper-mega-duca-explosão antes do Jornal Nacional, que era a hora de todos estarmos de volta.
Nessa noite, cada um de nós reservou um explosivo para soltar ao mesmo tempo, na hora do Vira, dos Secos e Molhados, que tocava sempre antes do encerramento. A fonte ficava uma loucura, com meninos e meninas dançando e berrando as corujas, os pirilampos, os sacis e as fadas. Na hora combinada, todos nós acendemos e atiramos as bombas dentro d´água, todos menos o meu primo Carlaile. Ali, naquele instante, ele tentou inventar o Cabeção Número 4 Submarino Explosivo e segurou a bomba daquele jeito esquisito, como se segurasse um pombo, um pardal, um passarinho que fosse voar. E eu me lembro de pensar que não daria tempo, que o Cabeção Número 4 era diferente, que se aquilo explodisse levaria uns dois ou três dedos da mão do meu primo, que eu podia rezar bem depressa para aquilo acabar logo, que se o Cabeção Número 4 fosse um passarinho a explosão faria o seu bico ser lançado com toda força para a frente e acertar o olho de alguém, e mais um milhão de coisas loucas que passaram pela minha cachola, até que eu vi, na câmera lenta do último centésimo de segundo, meu primo lançar a bomba-submarino. Ela mergulhou com seu brilho de Durex e barbante e subiu, subiu, subiu, no último jato colorido da fonte e explodiu lá em cima, bem alto, um barulho que desabou sobre nossas cabeças e se somou a todas as outras explosões que fizeram zumbir todos os ouvidos durante um tempão.
Além de todos os castigos, ficamos proibidos de chegar perto da fonte durante o resto da infância.
Fiquei viciado nas caixinhas, confesso. Coloco músicas velhas e recheadas de memórias o tempo todo, meus filhos ficam pedindo para que eu abaixe o volume. Quando eu coloco mais baixo, deslizando o controle bem devagarinho, é como se eu iniciasse a contagem regressiva para uma impossível viagem no tempo.
Agora toca o Roberto Carlos, dizendo que na cidade agora, do outro lado tem, alguém que vive sem saber que eu vivo aqui também. Eu abaixo o volume devagar,cinco, quatro, três, dois, ummm.
Na cidadezinha onde nasci havia uma fonte luminosa bem caprichada, diziam que era importada - que é o que se dizia quando se gostava da qualidade de qualquer coisa. Mudamos muito? Eu e meus primos íamos com fogos, bombinhas e traques para a praça da fonte. Às seis da tarde, tocava Ave Maria, a gente respeitava. Depois vinha o Hino Nacional, a gente respeitava. Aí vinha a Vanuza, cantando Paralelas, a gente respeitava, era uma emoção ver os jatos d´água coloridos ouvindo "Copacabana essa semana, o mar, sou eu". Nunca entendi os versos, mas sempre achei bonito pra dedéu. Depois vinha o Moacir Franco e aí a gente começava a soltar bombinhas que ninguém é de ferro.
Meu primo Carlaile era especialista em soltar traques submarinos. Ele acendia o traque e segurava o danado um tempo absurdo, a gente jurava que aquilo iria estourar nos dedos dele, mas no último segundo ele atirava o palito na fonte de um jeito esquisito, que eu nunca consegui imitar. Com a respiração suspensa a gente conseguia ver em câmera lenta o traque mergulhar e subir milagrosamente, estourando dentro d´água. Não fazia muito barulho e ninguém se incomodava com os estalos enquanto tocava Ronnie Von, Alcione, Agnaldo Timóteo e Beth Carvalho. Aí tocava o Odair José, a gente respeitava. O Raul Seixas, a gente respeitava. Os Secos e Molhados, a gente respeitava, hipnotizados com a dança colorida das águas. Depois vinha outra do Moacir Franco e a gente voltava a soltar bombas.
Meu primo Ivo era o tal com bombinhas. Ele sabia um jeito de aumentar o poder explosivo do Cabeção Número 2 usando fita Durex. Colocado debaixo de uma lata de ervilhas, a latinha subia uns vinte metros e descia aberta como uma margarida. Com barbante e Durex ele conseguia quintuplicar a potência de um Cabeção Número 4. A explosão era fortíssima, dava pra levantar tampa de bueiro, metia medo. Por causa disso, meu primo cumpria uma suspensão meio permanente no comércio local. Ninguém vendia o Número 4 para ele. Mas eu e boa parte dos meninos da praça da fonte não podíamos deixar de aproveitar o seu gênio explosivo. Em cada bolso, havia pelo menos um Cabeção Número 4 especialmente preparado para o gran finale, a grande-hiper-mega-duca-explosão antes do Jornal Nacional, que era a hora de todos estarmos de volta.
Nessa noite, cada um de nós reservou um explosivo para soltar ao mesmo tempo, na hora do Vira, dos Secos e Molhados, que tocava sempre antes do encerramento. A fonte ficava uma loucura, com meninos e meninas dançando e berrando as corujas, os pirilampos, os sacis e as fadas. Na hora combinada, todos nós acendemos e atiramos as bombas dentro d´água, todos menos o meu primo Carlaile. Ali, naquele instante, ele tentou inventar o Cabeção Número 4 Submarino Explosivo e segurou a bomba daquele jeito esquisito, como se segurasse um pombo, um pardal, um passarinho que fosse voar. E eu me lembro de pensar que não daria tempo, que o Cabeção Número 4 era diferente, que se aquilo explodisse levaria uns dois ou três dedos da mão do meu primo, que eu podia rezar bem depressa para aquilo acabar logo, que se o Cabeção Número 4 fosse um passarinho a explosão faria o seu bico ser lançado com toda força para a frente e acertar o olho de alguém, e mais um milhão de coisas loucas que passaram pela minha cachola, até que eu vi, na câmera lenta do último centésimo de segundo, meu primo lançar a bomba-submarino. Ela mergulhou com seu brilho de Durex e barbante e subiu, subiu, subiu, no último jato colorido da fonte e explodiu lá em cima, bem alto, um barulho que desabou sobre nossas cabeças e se somou a todas as outras explosões que fizeram zumbir todos os ouvidos durante um tempão.
Além de todos os castigos, ficamos proibidos de chegar perto da fonte durante o resto da infância.
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