Passei três horas da tarde de hoje numa secretaria de governo, esperando ser atendido para protocolar uma resposta clara e objetiva de que já havia pagado os impostos que estavam me cobrando com juros e multa. O povo brasileiro é paciente, eu também. Durante as três horas de espera pude terminar de ler Argo, o livro em que se baseia a história do novo filme de Ben Afleck. A sala estava lotada de brasileiros como eu e quase todos, inclusive, com o mesmo problema de cobrança indevida. As mulheres predominavam. Havia pelo menos 150 pessoas esperando sentadas e mais de vinte mesas de atendimento. Pelo menos 80% eram mulheres. Quando cheguei olhei para o grande painel de senhas e descobri que havia 69 pessoas na minha frente para tratar exatamente da tal cobrança indevida. Ao meu lado, um sujeito ficou puxando conversa com uma moça loura e bonita sobre as cópias autenticadas que ela estava levando. A moça disse que já havia trabalhado em sindicato e não estava ali pra perder viagem. Então ela simplesmente autenticou num cartório de notas todas as folhas que estava apresentando.
_Até a identidade? - disse o sujeito.
_Principalmente a identidade - disse a moça.
O sujeito disse que ninguém era mais obrigado a apresentar cópia autenticada de identidade. Mentalmente eu pensei que aquele não era um bom movimento, mas já era tarde para o pobre rapaz.
_É só apresentar o original junto. A pessoa compara na hora.
_Hum, hum. Sei - disse a moça, com grande ênfase numa sobrancelha levantada que significava "não seja Mané, seu otário!", mas o sujeito não percebeu.
_É verdade. Isso foi definido por um antigo figurão da República, o antigo ministro da desburocratização, Hélio Beltrão.
_Hum-hum. Tá. Conta outra.
_É sério. Isso faz tempo, mas continua valendo. Beltrão provou que o cidadão perdia muito tempo e dinheiro com idas ao cartório para tirar cópias da identidade que iria apresentar em repartições públicas do governo, ao reclamar de erros ou exigir a prestação de serviços do próprio. Quer ver? Pergunta pro cidadão ao seu lado.
Era eu, o cidadão ao lado. Foquei o infinito e tirei os óculos, por precaução e para não dar qualquer margem a que me colocassem naquele papo chato. Detesto conversas didáticas. E certamente aquilo era didático pacas.
_O senhor trouxe cópia autenticada ou só aquela xerox simplezinha, mequetrefe? - disse a moça.
_Acho que a minha é bem mequetrefe - eu disse.
_Com licença - disse a moça se levantando em busca de outro lugar.
O sujeito, que devia ter uns trinta anos, ficou falando sozinho por alguns segundos.
_Mas é verdade. As pessoas se esquecem depressa demais - ele disse ao meu lado.
Voltei para Argo. Acho que o filme será um grande sucesso. Lá fora caía uma chuva torrencial, dava para escutar o forte barulho do aguaceiro. Quando fui atendido, a mulher não exigiu cópia autenticada da identidade. Um avanço, sem sombra de dúvida. Entretanto, sem sequer ter olhado para qualquer das folhas que eu apresentava, a atendente disse que certamente meu pedido de cancelamento da multa seria indeferido.
_In-de-fe-ri-do! - ela disse, enquanto sublinhava cada sílaba com uma carimbada nas folhas do meu requerimento.
Fiquei perplexo, é óbvio. Olhei para o lado e lá estava a moça das cópias de identidade autenticadas. Ela me olhava com um sorriso superior estampado no rosto e certamente deve ter ouvido a atendente dizer que o meu requerimento seria indeferido. Mas nem mesmo ela poderia ter imaginado que as cópias mequetrefes eram tão burocraticamente desprezíveis.
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