O dono da loja de bicicletas comenta com o filho que nunca tiveram um ano tão ruim. É uma loja grande, na esquina da comercial. Deve haver umas 50 bicicletas expostas e um outro tanto dentro da loja, mas não existem empregados. É uma empresa familiar. Eu estou ali olhando uma bicicleta nova para o meu filho, mas de alguma maneira o dono da loja já percebeu que eu não vou comprar nada. Ele não se sente constrangido em deixar que eu escute essa lamentação porque é evidente que ele acredita que eu estou em situação pior. O pudor é um tipo de respeito que só existe entre os que se consideram iguais. Houve uma época em que eu ainda conseguia passar uma impressão diferente para os vendedores, mas agora é impossível. Está na cara que eu não tenho dinheiro. Não com esse par de tênis. Não com esse jeito de perguntar o preço e pelo número de parcelas.
_Você divide em 10 vezes? - eu disse.
_Não, amigo. Só os supermercados conseguem dividir em tantas prestações. Doze parcelas sem juros. Eu só consigo em seis vezes, reduzindo a minha margem ao máximo.
_Você tem um cartão?
_Cartão? Claro, claro. Pois então, filho, pelas minhas contas, vendemos uns vinte por cento a menos. Este é o meu pior ano - ele disse ao filho.
_Nosso. Talvez a coisa mude até o Natal. Não é? - disse o rapaz.
_Esse aqui é o suporte de teto? Como se faz para colocar a bicicleta em cima do carro? Não é muito difícil? - eu disse.
O dono da loja deu de ombros. Volta a conversar sobre o péssimo ano com seu filho.
_Quanto custa o suporte? eu disse.
_O suporte eu só vendo à vista - ele disse.
Engoli a raiva e dei meia volta. Eu olho para o meu filho, que por sua vez observa uma bela bicicleta cheia de molas e amortecedores.
_Talvez a gente possa comprar, vou conversar com sua mãe - eu digo.
_Não, não precisa.
Ele contém o entusiasmo. Não é nenhuma Nimbus 3000, a vassoura mágica de Harry Potter, mas é bacana. Não seria nenhum sacrifício extraordinário comprar a bicicleta, as prestações caberiam no orçamento. O que me preocupa mais é a logística dos passeios, como transportar as bicicletas até onde seja seguro andar de bicicleta. Quando saímos da loja, voltando pra casa, eu lembro ao meu filho do tempo em que ninguém se preocupava em andar de bicicleta na cidade.
_Eu andava pela Asa Sul e Asa Norte sem medo. Cansei de ir da quadra até o parque da cidade e voltar. Lá havia um trator que puxava diversos carros sem motor, que a gente chamava de trenzinho. A grande aventura era tentar pegar carona no trenzinho em movimento. Uma vez fomos de turma, uns seis ou oito garotos para o parque e minha bicicleta ficou com o pneu furado. Não havia como consertar. Um dos garotos tinha um kit para remendos, mas não quis emprestar. Um amigo disse que já tinha passado por aquilo e me ensinou a sair da enrascada. Enchemos o pneu com grama e folhas de jornal enroladas e voltamos pedalando. Levei uns tombos porque a bicicleta fica parecendo que está bamba, mas depois que se pega o jeito, não tem erro. Consegui voltar para casa com todo mundo.
_Pneu-grama?
_É esquisito, mas funciona - eu disse.
Tento sufocar o didatismo que eu deixo interferir em quase todas as nossas conversas. Sou um pai chato, acho que preciso ensinar as coisas ao meu filho, transmitir lições de vida, blá, blá, blá. Sei que ele se chateia com isso e por alguns minutos fico calado, represando a vontade de colocar um desfecho com algum sentido e importância para aquela história do pneu-grama. Então decido que é melhor ficar calado. Por hoje, é melhor ficar calado, estou sem um pingo-de-humor. Algum dia ainda voltaremos a essa mesma história, ela estará sempre esperando. Torço para que eu esteja bem inspirado. Sei que aprendi uma grande lição naquele dia. Todos os dias aprendemos muito sobre engolir sapos.
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