domingo, 12 de setembro de 2010

Sal para pequenos pesadelos


Ultimamente eu tenho chegado um bocado cansado do trabalho. E como já não escrevo diariamente no blog, procuro me concentrar nas crianças. Minha filha e meu filho. Ela tem apenas cinco anos e quer fazer valer a sua vontade. Eu tenho medo de satisfazer todos os seus desejos, porque me ensinaram que isso não é bom para as crianças. Não é mesmo. Mesmo assim, eu gostaria muito de satisfazer todas as vontades da princesinha.

E ela tem uma cisma com sal. Gosta de colocar sal na salada. E coloca sal demais se você deixar. E também gosta de lamber o saleiro. Vigiar a menina é difícil, ela fala pelos cotovelos. E isso distrai a gente. Então eu e a minha mulher vigiamos o saleiro, é mais fácil. Mas ainda assim eu me distraio ouvindo a voz da minha menina.

Eu lembro que gostava de lamber o prato quando era menino. Minha mãe perdia a paciência. Meu irmão lambia o prato às escondidas. Então eu também aprendi a lamber o prato às escondidas, até que um dia quebrei um prato. Minha mãe perdeu a paciência. Eu também perco a paciência. Antigamente os pais podiam perder a paciência numa boa, sem sentir doses cavalares de culpa. Hoje em dia é diferente. Você já se sente culpado só de pensar em perder a paciência. Mesmo assim, ás vezes a faina de controle é exagerada e me pego tomando o saleiro das mãos da menina no meio de uma refeição.

Nessas horas ela se chateia e eu também fico chateado comigo mesmo. A gentileza deve ser uma prática permanente, de todos os minutos, e muitas vezes eu me pego sendo um grosseirão detestável justamente com as pessoas que eu mais amo.

Mas agora já é noite. Minha mulher está na faculdade. E meu filho, de sete anos, foi dormir na casa do primo. Ela e a prima de seis anos de idade pedem uma sessão de cinema. E você já sabe como é. Basta um pacote de pipocas de micro-ondas, um DVD e apagar a luz. Como está frio, eu também levo cobertor para as meninas no sofá. Quando elas estão bem confortáveis, eu inicio o DVD e vou para a cozinha, três minutos de potência máxima para uma pipoca com manteiga. Quando fica pronta, coloco a pipoca em duas vasilhas de metal e salpico um pouco de sal por cima. As meninas adoram pipoca. E filmes das Barbie. Aliás, até eu gosto de filme da Barbie. São cheios de ação e aventura. E canções. Adoro filmes com cantoria. Até hoje assisto filmes do Elvis. E Dean Martin. Frank Sinatra. A diferença é que nos filmes da Barbie, as mulheres mandam um bocado nos homens. Pensando bem, é quase igual ao que acontece na vida real.

_Coloca mais sal, paiê?
_É, tio, mais sal - diz a prima.
_Não senhoras, já tem sal à beça. Muito sal faz mal.
_Ah, paiê, só um pouco.
_Não.

Antigamente os pais podiam tacar sal e manteiga à vontade na pipoca das crianças sem sentir doses cavalares de culpa. Hoje em dia, eu sinto culpa só de olhar para o saleiro. E a minha mulher não está em casa. Não dá para vigiar o saleiro sozinho.

Mas eu já estou cansado de assistir Barbie e as Mosqueteiras então venho para o computador.

De onde eu escrevo, um reflexo no blindex me permite observar o filme na TV e também as crianças no sofá. As duas meninas não parecem muito concentradas no filme. Começo a ler as notícias e me distraio com o que acontece neste país. Novas denúncias pipocam de todos os lados. Os suspeitos de sempre dizem que não sabem de nada. As pesquisas mostram que a eleição dos suspeitos de sempre vai ser uma barbada. As pesquisas mostram que a maioria está muito satisfeita e quer continuidade. As pesquisas mostram que as pessoas insatisfeitas querem continuar insatisfeitas. Como era mesmo a frase sobre a unanimidade do Nelson Rodrigues?

Escuto um barulho vindo da cozinha. Foi lá que eu deixei o saleiro.

_ Filha, por favor não ponha mais sal na pipoca - eu digo.

_Tá bom, paiê!

_Você e sua prima vão ficar com muita sede se puserem mais sal. Faz mal à saúde.

- Tá bom, paiê!

_ Eu não vou levantar e pegar água para meninas com sede.

Eu continuo a ler as notícias. São tão boas que é difícil conter as lágrimas. Às vezes tenho a impressão de que um desfecho bom se aproxima, mas em outras perco a esperança. As meninas adormecem no sofá, no meio do filme. Eu arrumo as camas e depois vou carregar as crianças. Rafael, o cachorro shi-tsu da minha filha, fica tentando arrancar as meias das crianças no caminho. Aí volto para o computador.

_Paiê - berra a minha filha, assim que estou de volta.
_O que é? Está com sede?
_Não paiê, tive um pesadelo. Dos pequenos.
_Sei. Aí ficou com sede, né?
_Só um pouquinho, paiê.
_E sua prima também teve pesadelo?
_O meu foi bem grandão, tio!!

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