Demoro uma semana de exames e umas trocentas e noventa mil horas de dores e incômodos para descobrir que sim, estou com dengue.
_Dengue? - perguntam meu vizinhos. Aos olhos deles, sou um sujeito que fica em casa fazendo barulho e gerando insetos para provocar doenças na vizinhança. Ou então um gerador de despesas extras, um sujeito que está sempre ocupado aparando a grama e cuidando do jardim para que eles saiam da letargia e também deixem suas casas mais bonitas.
_Não é hemorrágica. Ou pode ser, não sei. - eu disse, revirando os olhos para a vizinha da direita. Ela não gosta das minhas lixadeiras. Ela não gosta das serras elétricas. Ela reclama do barulho ensurdecedor do aspirador de pó. Ela uma vez disse que meu cachorro latia muito. Pô, Rafa, o Shit-tzu de estimação da minha filha é tão silencioso quanto um monge samurai gafanhoto. Secretamente, eu sei que essa vizinha torce para uma reviravolta do quadro-geral e eu sufoque em grave quadro de ebola. Por isso, alimento logo as falsas esperanças dela, que é para que não se transformem em desejos piores e mais sufocantes.
_Só vou ter certeza de que não é hemorrágica depois do teste do laço - eu digo, fazendo pose de sabichão wikipedia.
_Teste do laço?
_É um procedimento complexo de garroteamento do braço durante um grande período de tempo para a verificação da ocorrência de petéquias e outras formas de micro-manifestações hemorrágicas.
_Putz! - diz a vizinha. Eu jamais obteria esse efeito se dissesse que a enfermeira amarra seu braço por cinco minutos e verifica se fica alguma marca roxa. Não senhor, graças a Deus.
Então aqui estou eu, explicando para a vizinha passeando com o netinho porque estou nessa cadeira de plástico branco na frente de casa, observando os meninos descerem a rua de skate.
_Estou seguindo instruções médicas. Tenho que fazer repouso semi-absoluto. Só posso movimentar os olhos de um lado para outro, com velocidade relativa.
_E quando vai ficar bom? - pergunta a vizinha. Eu sei, eu sei. Lá no fundo ela deseja que apenas a franja da minha capa de Batman se recupere durante o meu último e mísero suspiro.
_O médico falou para que eu não me apressasse. Existem aspectos salutares pouco comentados sobre a dengue, um deles é a insônia com enxaqueca, com a qual, pelo que li nas bulas dos remédios prescritos pelo bom doutor, é possível usufruir de horas intensas de leitura e escrita.
_Ler e escrever? Eu pensei que dengue levava a pessoa a um estado geral de fadiga.
_Só quem não gosta de ler.
_E você gosta?
_Tento não gostar, mas é mais forte do que eu.
_Melhoras, então - ela disse. E eu percebo no fundo do olho o lampejo de uma praga arredondada vindo em minha direção. Mas,zás. Com um golpe de vista eu destrambelho aquela arenga e entro para tomar o genérico do voltaren. Sem voltaren não dá.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
quinta-feira, 4 de dezembro de 2014
Sem dúvida nenhuma
Estamos voltando do último dia de aula na escola nova. As notícias no rádio falam da votação da LDO. Meu filho, de 11 anos, começa a fazer perguntas e eu acho melhor contar uma historinha:
_Era uma vez um país cheio de dívidas, com uma inflação galopante e uma terrível fama de caloteiro. Os governantes prometiam soluções para os problemas, mas ninguém de dentro e de fora acreditava. Era uma pasmaceira danada. Um dia, depois de mais um calote e até do confisco da poupança do povo, um governante jurou que ia mudar a situação. Ele disse que arrumaria tudo, que pagaria as dívidas, que as pessoas poderiam investir em seus empreendimentos, abrir lojas, postos de serviços, contratar gente, comprar coisas e até voltar a poupar. Mas como o povo e todo o resto do mundo acreditaria numa balela daquelas? O governante disse então que gastaria menos do que recebia em impostos e também que faria uma poupança extra, como sinal de que estava falando sério. E então o governante começou a mostrar que não era gastador e que estava conseguindo fazer a tal poupança extra. As pessoas viram e voltaram a acreditar em um governante e, pouco a pouco, começaram a deixar de ver aquela gente do governo como um bando de mandões corruptos que não ajudavam e às vezes cobravam muito caro para não atrapalhar. Isso durou mais de dez anos, com problemas aqui, problemas acolá, mas aí a coisa começou a ficar preta. O país agora estava com um governante que exigia ser chamado de governanta e todos os dias surgiam denúncias e escândalos de gente do governo envolvida em corrupção. Mas na propaganda da governante o país estava uma maravilha. A maioria do povo continuava a acreditar que tudo estava bem, que o governo e sua gente estavam contendo os gastos e continuavam a fazer a poupança extra. Mas aos poucos as pessoas foram descobrindo que não era bem assim. O país não estava indo bem em relação a muitos outros países. A cobrança de impostos da governante continuava a melhorar, o governo recebia cada vez mais dinheiro. O problema é que também estava gastando muito, muito mais do que recebia. E para piorar, no fim do ano se descobriu que a governante não tinha conseguido fazer poupança extra nenhuma e que tinha até aumentado em muito a dívida do governo. Só que ainda tinha mais coisa. Todos os dias apareciam notícias de que pessoas que trabalhavam para empresas do governo estavam prometendo devolver dinheiro que tinham recebido para não atrapalhar. Era dinheiro que não acabava mais, em contas no exterior. Como resultado da gastança extra e da corrupção, muitas pessoas começaram a duvidar do governo e...
_Pô, pai, eu só perguntei o que é superávit primário.
_É a poupança extra que o governo prometeu. É isso que o projeto de lei pretende acabar.
_Mas pai, se o governo não conseguiu poupar antes, não adianta prometer que vai poupar agora. Então é melhor acabar com a mentirada.
_O problema é que o novo ministro do governo que cuida dos gastos já havia prometido uma poupança extra para o ano que vem e uma outra poupança extra maior ainda para o ano seguinte.
_Hum. E em quem você vai acreditar? No ministro ou na governante?
_Por enquanto, estou em dúvida.
_Mas pai, o governante manda no ministro?
_Bom, acho que sim. Quem nomeia é o governante.
_Ué, se o governante não prometeu poupança extra, então não adianta o ministro prometer, não é?
_É.
_Então, qual é a dúvida?
Volto a ligar o rádio. Em seguida desligo. É o primeiro dia de férias. Tenho um monte de dúvidas para tirar.
_Era uma vez um país cheio de dívidas, com uma inflação galopante e uma terrível fama de caloteiro. Os governantes prometiam soluções para os problemas, mas ninguém de dentro e de fora acreditava. Era uma pasmaceira danada. Um dia, depois de mais um calote e até do confisco da poupança do povo, um governante jurou que ia mudar a situação. Ele disse que arrumaria tudo, que pagaria as dívidas, que as pessoas poderiam investir em seus empreendimentos, abrir lojas, postos de serviços, contratar gente, comprar coisas e até voltar a poupar. Mas como o povo e todo o resto do mundo acreditaria numa balela daquelas? O governante disse então que gastaria menos do que recebia em impostos e também que faria uma poupança extra, como sinal de que estava falando sério. E então o governante começou a mostrar que não era gastador e que estava conseguindo fazer a tal poupança extra. As pessoas viram e voltaram a acreditar em um governante e, pouco a pouco, começaram a deixar de ver aquela gente do governo como um bando de mandões corruptos que não ajudavam e às vezes cobravam muito caro para não atrapalhar. Isso durou mais de dez anos, com problemas aqui, problemas acolá, mas aí a coisa começou a ficar preta. O país agora estava com um governante que exigia ser chamado de governanta e todos os dias surgiam denúncias e escândalos de gente do governo envolvida em corrupção. Mas na propaganda da governante o país estava uma maravilha. A maioria do povo continuava a acreditar que tudo estava bem, que o governo e sua gente estavam contendo os gastos e continuavam a fazer a poupança extra. Mas aos poucos as pessoas foram descobrindo que não era bem assim. O país não estava indo bem em relação a muitos outros países. A cobrança de impostos da governante continuava a melhorar, o governo recebia cada vez mais dinheiro. O problema é que também estava gastando muito, muito mais do que recebia. E para piorar, no fim do ano se descobriu que a governante não tinha conseguido fazer poupança extra nenhuma e que tinha até aumentado em muito a dívida do governo. Só que ainda tinha mais coisa. Todos os dias apareciam notícias de que pessoas que trabalhavam para empresas do governo estavam prometendo devolver dinheiro que tinham recebido para não atrapalhar. Era dinheiro que não acabava mais, em contas no exterior. Como resultado da gastança extra e da corrupção, muitas pessoas começaram a duvidar do governo e...
_Pô, pai, eu só perguntei o que é superávit primário.
_É a poupança extra que o governo prometeu. É isso que o projeto de lei pretende acabar.
_Mas pai, se o governo não conseguiu poupar antes, não adianta prometer que vai poupar agora. Então é melhor acabar com a mentirada.
_O problema é que o novo ministro do governo que cuida dos gastos já havia prometido uma poupança extra para o ano que vem e uma outra poupança extra maior ainda para o ano seguinte.
_Hum. E em quem você vai acreditar? No ministro ou na governante?
_Por enquanto, estou em dúvida.
_Mas pai, o governante manda no ministro?
_Bom, acho que sim. Quem nomeia é o governante.
_Ué, se o governante não prometeu poupança extra, então não adianta o ministro prometer, não é?
_É.
_Então, qual é a dúvida?
Volto a ligar o rádio. Em seguida desligo. É o primeiro dia de férias. Tenho um monte de dúvidas para tirar.
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